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Ai de ti, Ilha do Mel
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Sempre digo que os leitores deste blog são inteligentes e generosos. Olha agora o que o artista plástico, chargista e escritor Dante Mendonça me enviou:

“Aproveitando os 100 anos de Rubem Braga, mando anexo uma livre adaptação que fiz de “Ai de ti, Copacabana”.

“Ai de ti, Ilha do Mel” foi publicado no meu livro “Serra Abaixo, Serra Acima: o Paraná de trás pra frente”.

“Para aproveitar a temporada de verão e o gancho das comemorações do “Sabiá da crônica”, se interessar possa, eis aí minha colaboração.”

Dante

Walter Alves / Agência Gazeta do Povo

Ai de Ti, Ilha do Mel!
Por Dante Mendonça

(Decalcado do texto original de Rubem Braga, Ai de ti, Copacabana, escrito em janeiro de 1958 – do livro Rubem Braga – 200 crônicas escolhidas, Editora Record.)

1. Ai de ti, Ilha do Mel, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz, decalcada na voz de Rubem Braga, te abalará até as entranhas.

2. Ai de ti, Ilha do Mel, porque a ti chamaram Doce Paraíso e cingiram tua pele com tatuagens de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte e suas ondas partem o teu istmo ao meio e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tantas iniquidades e de tanta malícia.

4. Assim permissiva, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.

5. São tantas edificações piratas e elas se postam diante do mar qual rasas muralhas desafiando o mar; mas elas se abaterão.

6. E os escuros peixes nadarão nas tuas aleias e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o vento da Patagônia lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder o verde que ainda te resta; e não restará tijolo sobre tijolo.

7. E os polvos habitarão os teus dormitórios e os caranguejos as tuas barracas; e os meros se entocarão em tuas pousadas, desde as Encantadas até a Fortaleza.

8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.

9. Ai daqueles que dormem em leitos refrigerados de pousadas e desprezam o vento e o ar do Senhor e não obedecem à lei do verão.

10. Ai daqueles que passam em seus iates, lanchas e jet-skis, erguendo vagas, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez e teus mancebos fazem das pranchas de surf instrumentos de concupiscência.

12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias e eu vos quebrantarei.

13. Ai de ti, Ilha do Mel, porque os badejos e as garoupas estarão nas fossas de teus esgotos e os meninos da Praia do Farol, quando chegar o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal da Galheta; ou lançarão suas linhas dos altos dos navios da marinha mercante.

14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.

15. Por que rezais em vossos templos, fariseus da Ilha do Mel, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?

16. Antes de te perder eu agravarei a tua demência, ai de ti, Ilha do Mel! Os gentios de tuas praias avançarão uivando sobre ti e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

17. E tu, governador, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio na Ilha das Cobras, porque ali, entre algas, ela habitará.

Walter Alves / Agência Gazeta do Povo

18. E nos restaurantes os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e um homem-rã da Petrobras tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas sociais, no tempo em que havia colunas e havia colunistas.

19. Pois grande foi a tua vaidade, Ilha do Mel, e fundas foram as tuas mazelas; já quase te partes em duas, e não viste o sinal e já mandei tragar as areias da Baía de Paranaguá e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação de forasteiros, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil nativos miseráveis – tudo passará.

21. Assim, qual escuro alfanje, a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas parabólicas; porém, muitos peixes morrerão por se banharem em teus esgotos a céu aberto.

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde a Gruta das Encantadas até a Fortaleza Nossa Senhora dos Prazeres, porque eis que sobre ela vai a minha fúria e a destruirá. Canta a tua última canção, Ilha do Mel!

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