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Michael Faraday domina quase um episódio inteiro de "Cosmos": um dos maiores cientistas da história também era um homem profundamente religioso. (Imagem: Divulgação/Fox)
Michael Faraday domina quase um episódio inteiro de "Cosmos": um dos maiores cientistas da história também era um homem profundamente religioso. (Imagem: Divulgação/Fox)| Foto:

Quando Cosmos – a Spacetime Odyssey passou na televisão paga aqui no Brasil, no primeiro semestre de 2014, só consegui ver os primeiros episódios. A versão repaginada da série apresentada por Carl Sagan nos anos 80 e que conquistou milhões de pessoas para a ciência, até onde eu sei, nunca chegou a passar na tevê aberta brasileira, mas a essa altura os episódios legendados já devem estar disponíveis em vários sites. Eu preferi comprar o box pouco depois de seu lançamento nos EUA. No último fim de semana, após uma maratona da série, posso comentar com vocês minhas percepções no que diz respeito à relação entre ciência e fé.

Em primeiro lugar, quem tem interesse em ciência, ainda que mínimo, tem de ver, ponto. A série é incrível, muitíssimo bem feita, os conceitos são didaticamente explicados, enfim, é uma festa para os olhos e para o cérebro. Dito isso, Cosmos é fundamentalmente sobre ciência, sobre o passado, o presente e o futuro do universo, e sobre a história de várias pessoas que nos ajudaram a compreender melhor toda a realidade física que nos rodeia. A religião e sua relação com a ciência aparecem como coadjuvantes, até mesmo figurantes, diria. Talvez alguém pense que a série minimiza o papel da religião na história do desenvolvimento científico; eu prefiro achar que essa questão simplesmente não estava entre os objetivos da série. Quem quiser uma abordagem mais específica sobre o assunto pode ler Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental, de Thomas Woods, que virou a série A Igreja, construtora da civilização, no canal católico norte-americano EWTN (alguns episódios foram temas de posts do Tubo).

Neil DeGrasse Tyson em episódio de Cosmos

O astrofísico Neil DeGrasse Tyson conduz o espectador pelo universo, desde o nível atômico até o das supergaláxias. (Foto: Divulgação/Fox)

Tanto a religião é mera coadjuvante em Cosmos que o episódio em que ela tem um papel mais proeminente é justamente o de estreia, que conta a história de Giordano Bruno. Na época da exibição da série na tevê, publiquei um post comentando o caso, então não é o caso de simplesmente repetir o que já está lá. É interessante notar que o segundo episódio, que trata da evolução, dava muita margem para reflexões sobre a relação entre ciência e fé, mas os responsáveis pela série optaram por não entrar de cabeça na polêmica. O apresentador de Cosmos, Neil DeGrasse Tyson, diz apenas que a teoria causou alvoroço por questionar a crença de que tínhamos sido criados separadamente, mas logo deixa a controvérsia de lado para reforçar a “experiência espiritual” de assumirmos nosso parentesco com todos os seres vivos. Sobra um tempinho para uma crítica ao Design Inteligente, mas é só isso.

O criacionismo, no entanto, é mencionado duas vezes, ambas de passagem, ao longo da série. No episódio “A sky full of ghosts” (número 5 no DVD, número 4 na exibição televisiva), Tyson explica que estamos vendo o passado das estrelas e usa o exemplo da Nebulosa do Caranguejo, que está a 6,5 mil anos-luz de nós. Ora, se o universo foi criado há 6 mil anos, como dizem os criacionistas de Terra jovem, como somos capazes de ver estrelas e galáxias que estão muito mais afastados de nós que a Nebulosa do Caranguejo? E o episódio 7 (“The clean room”) começa citando o cálculo de James Ussher e mostra como Clair Patterson conseguiu determinar a idade da Terra a partir da análise de destroços deixados por impactos de meteoros.

Cosmos é um grande desfile de personagens que fizeram a história da ciência, e a religiosidade de alguns deles é mencionada ao longo da série. O caráter profundamente místico de Isaac Newton aparece no episódio 3 (“When knowledge conquered fear”). No mesmo “A sky full of ghosts” ficamos sabendo que John Michell, o primeiro cientista a propor, no século 18, a ideia de buracos negros, também era pastor anglicano. Mas talvez o episódio mais significativo neste quesito seja “The electric boy” (número 9 no DVD, número 10 na televisão), quase todo dominado por Michael Faraday, que nem sempre tem o reconhecimento que merece, apesar de seu trabalho ter sido fundamental para que o mundo seja hoje como ele é. Presbiteriano, Faraday foi um homem profundamente religioso, e o episódio cita esse fato, embora sem dar a ele o peso ideal: para Faraday, havia uma profunda união entre Deus e a natureza, e isso influenciava seu trabalho.

Michael Faraday em animação da série Cosmos

Michael Faraday domina quase um episódio inteiro de “Cosmos”: um dos maiores cientistas da história também era um homem profundamente religioso. (Imagem: Divulgação/Fox)

O mesmo episódio ainda nos apresenta James Clerk Maxwell, que traduziu em equações matemáticas aquilo que Faraday (que tinha pouquíssima instrução formal) foi descobrindo usando sua intuição. A religiosidade de Maxwell era tão intensa quanto a de Faraday, mas esse fato não é citado em Cosmos. Assim como Maxwell, há outros casos de cientistas cujas convicções religiosas passam batidas. Até acho que na maioria dos casos não faria mesmo diferença mencioná-las ao longo da série, mas deixo registrado aqui: Cecilia Payne (episódio 8, “Sisters of the Sun”), após ter sido agnóstica, se tornou unitária e chegou a dar aulas em escola dominical; Vera Rubin, personagem do episódio final, é judia, leva a sério sua religião e não vê problemas em compatibilizá-la com a ciência, inclusive integrando a Pontifícia Academia de Ciências; o austro-americano Victor Hess, que aparece no mesmo episódio, era católico e chegou a escrever sobre ciência e fé (veja uma tradução em espanhol aqui), tendo também feito parte da PAC. A ausência notável em Cosmos é a do padre Georges Lemaître, pioneiro do Big Bang e que, no mínimo, deveria ter tanto reconhecimento no que diz respeito à observação da expansão do universo quanto Edwin Hubble (que, na série, leva todo o crédito).

Além dos personagens, alguns outros temas caros ao diálogo entre ciência e fé também aparecem de relance em Cosmos: o papel da ciência como “purificadora” da religião, eliminando a superstição e oferecendo explicações que debilitam a noção de “Deus das lacunas”, aparece nos episódios 3, 6 (“Deeper, deeper, deeper still”) e 11 (“The immortals”). A capacidade do ser humano de reconhecer padrões, o que levou ao reconhecimento de que havia leis naturais regendo o universo (uma noção reforçada pela visão judaico-cristã de que Deus dispôs “tudo com medida, quantidade e peso”), é mencionada nos episódios 3, 6 e 8. E um ou outro podem interpretar o discurso final da série, que fala em “questionar a autoridade” (tema que também aparece em “Hiding in the light”, episódio 4 do DVD e 5 na televisão) como um ataque à religião, mas eu discordo: Tyson critica o fanatismo, não a religião. Tenho quase certeza de que São Roberto Bellarmino teria concordado com o texto.

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