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No começo da semana, o astrofísico argelino Nidhal Guessoum publicou um ótimo artigo no site Big Questions Online, chamado Why Should Scientists Care About Religion? Guessoum, que é muçulmano e leva a sério sua religião, foi pesquisador da Nasa e hoje leciona nos Emirados Árabes. Tive a oportunidade de assistir a algumas aulas dele, e trocar ideias informalmente, quando participei do curso do Instituto Faraday, em Cambridge, há dois anos.

O astrofísico Nidhal Guessoum vem sendo uma voz importante ao defender a harmonia entre ciência e fé no mundo islâmico. (Foto: Divulgação)

O astrofísico Nidhal Guessoum vem sendo uma voz importante ao defender a harmonia entre ciência e fé no mundo islâmico. (Foto: Divulgação)

Guessoum inicia seu texto dizendo que gasta muito da sua energia convencendo outros muçulmanos a levar a ciência a sério. Mas que dá muito mais trabalho convencer cientistas a levar a religião a sério. E aqui Guessoum distingue “religião” de “fé” e “espiritualidade”. Fé, ele diz, é a crença naquilo que não pode ser objetivamente comprovado (até porque, se pudesse, não precisaria de fé…). Espiritualidade é uma sensação de “algo mais” que o meramente biológico/físico/químico (por isso a pesquisadora Elaine Ecklund, citada por Guessoum, descobriu cientistas que se declaram ao mesmo tempo “ateus” e “espirituais”). Já a religião é um sistema organizado, que envolve crenças, dogmas, sistemas éticos e algum grau de vida em comunidade.

A dificuldade de fazer cientistas levar a religião a sério, explica Guessoum, está no fato de haver uma assimetria entre ciência e religião; embora ambas sejam ramos do conhecimento, aquele produzido pela ciência, por seu caráter empiricamente comprovável, sofre menos questionamentos. Para piorar, a religião, especialmente após o Iluminismo, vem sendo retratada como irracional, bitolada, contrária à ciência, enfim, toda aquela coisa que já conhecemos. Uma visão que Guessoum descarta como “simplista” e “caricata”. Sim, é verdade que temos alguns grupos que se encaixam na descrição acima, mas boa parte das grandes religiões do mundo está longe desse espantalho, inclusive no que se refere à relação com a ciência. Guessoum cita essa teologia “atualizada” como sendo às vezes classificada de “teologia liberal”. Achei arriscado, porque pelo menos entre os católicos o termo “liberal” é associado mais ao campo moral, embora também inclua muitos questionamentos em relação às próprias bases do Cristianismo. Além disso, é perfeitamente possível ser um “conservador” e reconhecer sem problemas o que a ciência nos diz sobre o universo e o homem. Mas isso é uma digressão. O que importa é que, para Guessoum, os cientistas deveriam considerar um diálogo com essas teologias e religiões “atualizadas”.

E aí vem a pergunta: por quê? Só a ciência e o liberalismo já não são suficientes para explicar tudo, para cobrir tudo aquilo que nos diz respeito? Guessoum afirma que não; afinal, essa é a base do cientificismo. Ele diz que mesmo cientistas com essa tendência “imperialista” precisam reconhecer que nossa visão de mundo “não pode estar limitada a uma perspectiva científica”, e cita a arte e a filosofia como exemplos. “Da mesma forma, a religião aborda uma dimensão da vida e pensamento humanos que raramente pode ser iluminada pela ciência”, afirma. Quando perguntamos a uma pessoa religiosa o que isso traz a ela, diz o astrofísico, as respostas são do tipo: um propósito e um significado para a vida, perspectiva em relação às coisas, senso de identidade, ênfase no amor como o mais importante da vida, orientação moral, força para lidar com desastres e morte. Cientistas que têm fé ainda acrescentam ideias como uma visão de mundo unificada, em que o universo “faz mais sentido”. Enfim, uma explicação harmônica para a existência em todas as suas dimensões, afirma Guessoum. Além disso, a religião ajuda no debate sobre o que ser humano realmente significa; e fornece aos cientistas princípios éticos para sua vida pessoal e profissional.

“A ciência, pelo menos naquilo que se considera já estabelecido, deve ser aceita e defendida por todos, crentes e não crentes, e particularmente pelas pessoas instruídas. Fé, espiritualidade e religião, por outro lado, são conjuntos opcionais de ideias que se pode escolher ter ou não, em uma ou outra versão. Entretanto, pessoas com educação e discernimento em particular devem se esforçar para fazer a fé, a espiritualidade e a religião tão sofisticadas, abertas e atualizadas quanto for possível. Assim que essas duas exigências forem cumpridas, ciência e religião têm muito a colaborar uma com a outra, e com a humanidade”, diz Guessoum. Na pior das hipóteses, os cientistas não crentes se beneficiam ao entender o público religioso para melhor comunicar seu trabalho e suas descobertas. “É óbvio que não podemos ignorar a ciência, com seus métodos e resultados. Mas também seria benéfico à humanidade se a ciência e os cientistas não apenas deixassem de tentar apagar tudo que a religião pode proporcionar e de insistir em comportamentos puramente racionais, mas também começassem a compreender as contribuições positivas que a religião pode trazer à humanidade. Há mais no mundo que o que a ciência pode ver”, encerra Guessoum.

No fim, o astrofísico propõe três questões para discussão:

1. Os termos “religião” e “religioso” ganharam novos significados recentemente? A ciência influenciou o entendimento atual desses termos?

2. Religião e ciência deveriam ser considerados magistérios totalmente separados, como propunha Stephen Jay Gould, ou deveríamos relacioná-las de alguma maneira?

3. “Encantamento e admiração” (sei que wonder e awe têm vários outros significados que podem se encaixar igualmente no conceito acima, como “assombro”, “fascinação”, “espanto”; escolham à vontade) vão substituir “religião e espiritualidade” no futuro, ou a religião tem alguns valores centrais que sempre serão atrativos para as pessoas?

Que tal aproveitar a caixa de comentários para discutir essas questões?

Prêmio Top Blog 2013, votação em breve!
Em 9 de setembro começa a primeira rodada de votação da edição 2013 do prêmio Top Blog. Em 2010 e 2011, o Tubo venceu a categoria “Religião/blogs profissionais” pelo voto popular. Em 2012, não ficamos entre os finalistas, mas o Blog Animal, também da Gazeta, venceu sua categoria pelo júri acadêmico. Esse ano, teremos outros blogs da Gazeta do Povo concorrendo também, à medida que eles forem se inscrevendo vocês saberão como votar em todos eles.

(Aviso: O Instituto Faraday, mencionado nessa resenha, concedeu em 2011 uma bolsa para que o blogueiro fizesse um curso de uma semana na Universidade de Cambridge)

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