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A analogia do "Deus relojoeiro" de William Paley deu origem a uma visão complicada da relação entre Deus e o universo. (Foto: Samuel Alves Rosa/Free Images)
A analogia do "Deus relojoeiro" de William Paley deu origem a uma visão complicada da relação entre Deus e o universo. (Foto: Samuel Alves Rosa/Free Images)| Foto:

Em muitos debates sobre ciência e religião, sempre tem alguém que pensa estar arrasando e dando a paulada definitiva com a pergunta “mas quem criou Deus?”, esquecendo que uma das características de Deus é justamente ser o incriado, a causa primeira de tudo o que há. Esse tipo de tosquice podemos descartar sem dó. Mas existe um certo Deus que foi, sim, criado. Isso ficou claro para quem pôde participar dos encontros que a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência está realizando em várias cidades brasileiras (confira a agenda no site deles). Estive no evento de Curitiba e, em uma das palestras, o Guilherme de Carvalho nos trouxe um ponto de vista interessantíssimo sobre a origem de um velho conhecido nosso, o “Deus das lacunas”. E seu criador é, por incrível que possa parecer, a teologia natural inglesa.

A analogia do

Ah, esse “Deus relojoeiro”… (Foto: Samuel Alves Rosa/Free Images)

A teologia natural – ou seja, a busca por Deus a partir dos atributos da natureza – já existia bem antes dos ingleses; o próprio termo já tinha sido usado na época dos romanos. Mas foram mesmo os ingleses que a levaram ao ápice, especialmente graças ao trabalho de William Paley, autor de uma obra chamada justamente Teologia Natural. É nela que está a famosa história do relojoeiro: se você encontra um relógio no meio do mato, deve presumir que algo tão intrincado e que funciona tão bem não surgiu, ou se montou, espontaneamente: houve alguém que trabalhou ali, um designer, um criador. Ora, se é assim com um relógio, não seria assim também com a natureza?

Esse é um resumo simples da analogia, mas é suficiente para demonstrar aonde queremos chegar. O problema do relojoeiro é que ele, depois de montar o relógio, lhe dá a corda e sai completamente de cena. Não sobra nenhum sinal dele. No máximo, o que o relojoeiro vai fazer é consertar o relógio quando ele apresenta algum defeito, ou dar mais corda quando ela estiver no fim. Se Deus é o “relojoeiro do universo”, como pretendiam os teólogos naturais ingleses, Ele não pode ser visto quando o universo está funcionando bem; na verdade, só ficamos sabendo que há um “relojoeiro” nas intervenções extraordinárias. Ora, o que é isso senão o conceito de “Deus das lacunas”, aquela divindade que surge como explicação para as grandes questões para as quais (ainda) não há uma resposta da ciência? Guilherme de Carvalho ainda acrescenta que é justamente essa mentalidade que levou ao Design Inteligente, segundo o qual Deus está nas modificações extraordinárias e some no ordinário.

Charles Darwin tinha sido leitor de William Paley, e Carvalho diz que o naturalista inglês, ao perder a fé, deixou de acreditar nesse Deus de Paley. Afinal, Darwin havia descoberto que o relógio não foi simplesmente feito e largado na floresta, como na analogia de Paley. O relógio do universo estava, na verdade, se fazendo a si mesmo. O salto que Darwin não deu foi concluir que as leis que permitiam ao universo construir a si mesmo, essas, sim, vinham de um criador. Aqui não nos cabe indagar os porquês de Darwin; basta saber que ele nos revelou um mundo bem mais fascinante que aquele proposto por Paley. Carvalho ainda citou John Newman – clérigo anglicano que depois se tornou cardeal católico –, para quem talvez tivéssemos mesmo que perder a fé neste Deus mostrado por Paley e seus colegas.

Isso não significa que não deva haver uma teologia natural; significa apenas que aquela corrente específica da teologia natural inglesa, que podemos chamar também de “physical theology“, ou “teologia física”, tinha seus méritos, mas seus perigos. E um deles foi justamente imaginar a relação de Deus como o mundo como a de um engenheiro mecânico, ou um relojoeiro. “O problema é que a própria relação de Deus com o mundo, nessa visão, se torna também mecânica. Isso pode ser usado como metáfora parcial, mas, quando se torna a nossa definição teológica central, então pode mesmo ser outro Deus, como argumentou Newman”, acrescenta Carvalho.

Então, o que precisamos é de uma nova teologia natural (e os ingleses, sempre eles, já estão trabalhando nisso), uma que tenha Deus como pressuposto, ponto de partida, e não como ponto final ou conclusão. Em vez de a natureza conduzir à graça, ver que a natureza está contida na graça. Isso nos permite ver o famoso trecho do Salmo 18(19) segundo o qual “Narram os céus a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos” de uma outra forma.

glaciar Perito Moreno (Argentina)

Na “nova teologia natural”, não se parte da grandiosidade da natureza para se concluir a existência de Deus; a natureza é um elemento que ajuda a refletir sobre a grandeza de Deus. (Foto: Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo)

Enquanto eu ouvia a palestra, lembrei de um trecho de Os quatro amores, de C.S.Lewis, que parece se encaixar no que estamos dizendo aqui. Lewis diz:

Se você adota a natureza como mestra, ela lhe ensina exatamente as lições que você decidiu aprender antecipadamente; em outras palavras, a natureza não ensina (…) devemos aprender nossa teologia ou filosofia em outros lugares (supreendentemente, muitas vezes nós as aprendemos com teólogos e filósofos). (…) A natureza nunca me ensinou que existe um Deus de glória e infinita majestade. Tive que aprender isso de outras maneiras. Mas a natureza deu à palavra “glória” um significado para mim. (…) Uma filosofia verdadeira pode, às vezes, validar uma experiência da natureza, mas uma experiência da natureza não pode validar uma filosofia. A natureza não confirma nenhuma proposição teológica ou metafísica (ao menos não do modo de que estamos tratando), mas ajuda a demonstrar o que essa proposição significa. E isso, dentro das premissas cristãs, não é acidental. Pode-se esperar que a glória criada nos forneça indícios da glória incriada; uma é derivada da outra e a reflete de algum modo. De algum modo. Mas talvez não de um modo tão simples e direto quando poderíamos supor num primeiro momento.

O que Lewis está dizendo é que não podemos descartar a natureza – ela, como afirmou o escritor, nos dá indícios da “glória incriada” e a reflete. Mas não é um caminho em linha reta do criado para o incriado. Há a necessidade de uma teologia natural. Mas uma que saiba ver a ação de Deus no ordinário, no funcionamento regular do universo, e não nas intervenções extraordinárias.

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