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A crucifixão no Evangeliário de Rabbula, de 586, tem um Jesus vestido; o Crucifixo Bocholt, do início do século 14, tem feridas semelhantes às da peste; na “Crucifixão” de Van Dyck (1622) os cravos estão mais próximos dos pulsos: estilos refletem conhecimento da época. (Imagens: Reprodução / Watzmann/Wikimedia Commons / Reprodução)
A crucifixão no Evangeliário de Rabbula, de 586, tem um Jesus vestido; o Crucifixo Bocholt, do início do século 14, tem feridas semelhantes às da peste; na “Crucifixão” de Van Dyck (1622) os cravos estão mais próximos dos pulsos: estilos refletem conhecimento da época. (Imagens: Reprodução / Watzmann/Wikimedia Commons / Reprodução)| Foto:

Semana Santa é, inevitavelmente, época de falar no Sudário de Turim, talvez a mais famosa e controversa relíquia da Cristandade. E também é tempo de olhar para a cena da crucifixão de Cristo, representada das mais diversas formas, em mosaicos, pinturas, esculturas e filmes, ao longo dos séculos. É na interseção entre o pano e a iconografia da Paixão que o estudioso Jack Brandão, doutor em Literatura Alemã e Fotografia, se movimenta melhor. O Sudário entrou na sua vida há mais de 30 anos, antes mesmo dos doutorados, mas o estudo do fenômeno imagético o ajudou a “ler” melhor as evidências que aparecem tanto no Sudário quanto na arte sacra. Como todo interessado no Sudário que se preze, Brandão conhece os estudos científicos feitos no tecido e sobre ele, desde os sérios, como os de 1978, até os picaretas, como o recente fiasco de Luigi Garlaschelli usando manequins plásticos, passando pelas controvérsias como a do carbono-14 feito em 1988. Mas é no campo da história da arte que Brandão oferece sua maior contribuição.

O pesquisador explica que representações de Cristo começaram a surgir ainda no fim da Antiguidade, mas a iconografia da crucifixão é um pouco mais tardia, iniciando-se no século 5.º, e os artistas da época tinham um pequeno problema: este tipo de pena capital havia sido abolida por Constantino no ano 337, ou seja, já não havia modelos “reais” que pudessem ser usados. “O resultado eram representações totalmente distantes da realidade: Cristo com roupas, pregos nas palmas das mãos, braços em 90 graus em relação ao corpo, olhos abertos. Os olhos fechados do Cristo crucificado só começam a aparecer como reação oficial a heresias que negavam a morte de Jesus, como se ele tivesse apenas ‘fingido’ morrer”, diz Brandão. Esse paradigma – que inclui também o Cristo “limpinho”, apenas com as chagas, mas sem marcas de flagelação – contrasta fortemente com a imagem do homem do Sudário, algo que Brandão vê como um elemento que afasta a possibilidade de o pano ser uma falsificação medieval. “Um artista daquela época simplesmente não teria como criar um crucificado daquela forma porque ele não tinha o conhecimento necessário para tal; era um distanciamento enorme em comparação com toda a iconografia da crucifixão praticada na Idade Média, ele teria de imaginar tudo aquilo que está no Sudário, mas que não existia em nenhuma outra imagem contemporânea; é muito improvável”, afirma o especialista.

O Jesus jovem e imberbe do mosaico da igreja de São Vital, em Ravenna (primeira metade do século 6.º) e o Cristo Pantocrator da Igreja do Santo Salvador em Chora, Istambul (início do século 14): mudança de paradigma causada pelo Sudário. (Imagens: Reprodução)
O Jesus jovem e imberbe do mosaico da igreja de São Vital, em Ravenna (primeira metade do século 6.º) e o Cristo Pantocrator da Igreja do Santo Salvador em Chora, Istambul (início do século 14): mudança de paradigma causada pelo Sudário. (Imagens: Reprodução)

E que impacto teve o Sudário, ao aparecer no século 14 como um pano bem maior, com a imagem de frente e costas de um corpo inteiro? Brandão cita um caso curioso, o das Gabelkreuze alemãs, como a que aparece na foto que abre este texto: são crucifixos em que Cristo aparece com o corpo todo marcado, mas as feridas parecem mais com as ulcerações típicas da peste negra que com o resultado de uma flagelação. As Gabelkreuze são posteriores aos primeiros registros do Sudário na França, mas Brandão não acredita que os sinais da flagelação existentes no pano tenham inspirado os artistas desses crucifixos, que os teriam “adaptado” a uma doença contemporânea, talvez com a finalidade de aproximar o sofrimento de Jesus das tribulações das vítimas da peste; trata-se de mera coincidência. Outros exemplos já parecem seguir mais à risca as informações contidas no Sudário, como a Crucifixão de Anthony van Dyck (em que os cravos estão em uma posição muito mais realista), também na foto principal deste texto. Mas, além de serem exceção, mesmo eles ainda mantêm elementos da iconografia anterior, como o corpo sem marcas da flagelação. O Cristo “limpo” continuará a ser a regra por muito tempo.

Por que o Sudário propriamente dito não causou uma revolução iconográfica tão avassaladora quanto a do Sudário/Mandylion? Porque, àquela altura, o paradigma já estava consolidado, e, “uma vez estabelecido o paradigma, os artistas simplesmente vão segui-lo. Um ou outro insere uma marca pessoal, mas o produto final não muda muito, como no caso de Van Dyck. Além disso, no Renascimento, por exemplo, havia outros padrões a seguir, e um deles era o comedimento no emprego da expressão de sofrimento, inclusive do sangue”, explica Brandão. A força do modelo estabelecido na era pré-Sudário é tão grande que, mesmo depois da famosa foto de Secondo Pia, em 1898, e de tudo o que se sabe hoje sobre o pano, o Cristo crucificado continua a ser representado majoritariamente segundo esse modelo, como o leitor poderá perceber visitando a igreja mais próxima – isso, claro, se tiver a sorte de encontrar um crucifixo tradicional, em vez de alguma monstruosidade modernosa.

Outro exemplo significativo é o fato de Mel Gibson, no seu filme A Paixão de Cristo, ter optado pelos pregos nas palmas das mãos, ignorando a evidência do Sudário em favor da tradição iconográfica, algo que ele próprio declarou. “Foi uma pena que Mel Gibson tenha feito essa escolha. Como era certo que o impacto do filme seria enorme, ele teria a chance de impor um novo paradigma, mas a desperdiçou. Se por um lado ele mostrou o Cristo flagelado (talvez até com algum exagero), manteve erros como os cravos nas mãos em vez dos pulsos, e o Cristo carregando a cruz toda em vez da trave horizontal”, diz o especialista.

Jack Brandão busca na história da arte os elementos que ajudam a resolver controvérsias em torno do Sudário de Turim. (Foto: Divulgação)
Jack Brandão busca na história da arte os elementos que ajudam a resolver controvérsias em torno do Sudário de Turim. (Foto: Divulgação)

Como ver, então, a alegação de que o Sudário é uma falsificação medieval, feita entre 1260 e 1390, como diz o teste de carbono-14 feito em 1988? Além dos elementos historiográficos que tornam inverossímil a ideia de um artista falsário retratando Cristo de forma totalmente inimaginável para os padrões da época, Brandão aponta algumas outras possibilidades, das quais a mais forte é a da contaminação do material. “O Sudário foi incendiado, remendado, manipulado, pegou fumaça de velas. O microbiologista Leoncio Garza-Valdez, já falecido, levantou a hipótese de que bactérias tenham ‘plastificado’ o tecido. Não é que o carbono-14 errou; ele apenas avaliou a data de outra coisa que não era o pano em si”, diz Brandão.

O pesquisador, no entanto, não acha que seja a hora de novos testes que resolvam a controvérsia. “Seria interessante, mas não agora. Hoje, muitos usam o Sudário como catapulta para a fama, com estudos sem critério científico nenhum”, justifica. De qualquer maneira, continua, o que a ciência pode dizer sobre o pano vai só até certo ponto: explicar as características do tecido e da imagem, ou a maneira como ela foi produzida. “Um homem de ciência pode acreditar que o Sudário é verdadeiro, mas vai fazê-lo porque tem fé, pois não é a ciência que vai dizer que aquele foi o pano que envolveu Jesus”, diz Brandão – que, curiosamente, nunca viu pessoalmente o objeto que tanto estuda. “Nessas exposições públicas, o Sudário fica a uma distância razoável, e a imagem do pano é bem fraca; não tenho interesse em enfrentar filas enormes para não ver quase nada. Claro que, se um dia houvesse uma nova rodada de testes, e me chamassem, se eu tivesse a chance de ver de perto, tocar o Sudário, seria algo completamente diferente; aí não há como dizer ‘não’.”

Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também fui colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio entre 2010 e 2017. A editora vinculada à revista publicou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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