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A inquietude de Bel Coelho
Mesmo com o fechamento do restaurante Dui, de São Paulo, no início de maio, a chef paulista Bel Coelho continua no pique: está gravando um programa de televisão, realocando o experimental Clandestino (que ficava no segundo andar do Dui e abria uma vez por semana) e quer ter uma cozinha itinerante. “Sem restaurante um chef até sobrevive, mas sem cozinha, não dá. Estou construindo um espaço no Beco do Batman, na Vila Madalena. Acho que fica pronto até fim de agosto”, revela.
A ideia da cozinha é ser um QG para a experimentação e, com isso, levar o Clandestino para outros lugares. Não parar quieta parece ser um pré-requisito para os próximos anos. Outro projeto que a faz viajar a cada duas semanas é o programa de televisão Assiette Brésilienne, produzido para o canal franco-alemão Arte e que vai passar em junho na Europa e no Brasil, pela Discovery Channel. Serão 20 episódios para mostrar histórias de gente que cozinha pelo país afora.
Entre seus projetos, ainda está adquirir um food truck que a possibilite ir dos mercados e feiras gastronômicas à periferia e servir sanduíches gourmets ou pratos que sejam fáceis de comer usando apenas um garfo. Um plano ainda em esboço e sem prazo.
A democratização da comida gourmet, junto da experimentação e do comfort food, são as linhas que Bel traça em sua carreira. Mas não descuida de ter uma visão macro da gastronomia no Brasil. Confira a entrevista que ela concedeu à reportagem do Bom Gourmet no último mês, quando esteve em Curitiba como chef convidada da Natura e preparou um jantar inspirado nas fragrâncias da marca.
Gazeta do Povo: Quando você fala na experimentação do Clandestino e na democratização, no caso de ter um food truck, você está falando de duas linhas diferentes. E no comfort food [movimento que prega uma cozinha que relembre o sentimento de aconchego], você pretende continuar em algum projeto?
Bel Coelho: A comida comfort é mais descomplicada para cozinhar. São cozimentos mais longos e sabores mais acessíveis e conhecidos. Acho que no que é democrático ela estará presente. Mesmo quando eu faço um menu degustação cheio de técnicas novas e modernas, eu tenho um tempero bastante caseiro para algumas coisas. O comfort está um pouco nisso: dependendo do menu e do prato, conecta a pessoa a sabores que ela conhece.
Sobre a cozinha experimental, ultimamente a gastronomia brasileira tem chamado atenção. Como você avalia o chef como pesquisador?
Acho que pesquisa é eterna. Eu fiz uma grande pesquisa sobre comida afro-brasileira nos últimos dois anos para fazer o Clandestino no ano passado, inspirado nas comidas dos orixás. Essas viagens são legais porque eu acabo conhecendo não só ingredientes, mas receitas regionais e caseiras que eu ainda não tinha me deparado. Eu me inspiro muito nos novos ingredientes, aqueles que a gente não conhece, no que é regional, caseiro e receitas de família.
Como o programa de tevê vai refletir no Clandestino?
Muito positivamente. Não tenho nada testado ainda, por isso prefiro não falar das ideias. Mas tem coisas interessantes com milho, técnicas bem antigas que são legais de aplicar em um menu degustação e novos sabores. Eu já tinha um bombom de sarapatel com uma gelatina de jabuticaba que servia no Clandestino dos Orixás. Mas nada melhor que ir lá e comer um sarapatel no agreste, quase no sertão. Você vê pessoas que ainda fermentam o queijo em bucho de boi, coisas que são proibidas e achamos que ninguém faz mais, mas eles fazem e vamos mostrar. Fomos num engenho que ainda faz rapadura e açúcar mascavo como na época da Capitania de Pernambuco. É muito louco que ainda consigam sobreviver desse jeito. Tem um moinho pra moer a cana, mas o resto do processo é todo manual. O fogo é com o bagaço da cana, reduzem a garapa ali e depois secam e vira rapadura. Eles não fazem nem açúcar refinado. É legal que isso ainda exista.
Que outros temas da cultura te interessam? O que te dá vontade de ir para a cozinha que não seja um ingrediente?
A raiz indígena já me interessou muito; a raiz portuguesa também. Eu sou portuguesa por parte de pai, meus avós eram portugueses, fiquei seis meses em Portugal. Então esta influência é um estímulo sempre, e ela está em todos os lugares. As cozinheiras de casa me interessam muito. As “quase-de-casa”, que têm um restaurante informal, as cozinhas regionais também. Eu tenho um especial apreço pela baiana porque é africana, pela do Norte que é muito rica em ingredientes e na cozinha do Pará, e pela mineira. A mineira eu adoro porque eles são os mais gourmets do Brasil. Eles têm muito apreço pelo próprio queijo, pela própria linguiça, torresmo… Antes de a gente começar com essa valorização dos ingredientes e produtos locais, eles já tinham isso dentro deles: de ter um porco no quintal, de ter taioba, de ter couve plantada, um bom queijo… Eles valorizam o que é deles há mais tempo, enquanto o resto do Brasil só olhava para fora, não olhava nem para a América Latina.
Por que você acha que os chefs começaram a pesquisar os ingredientes daqui?
Nunca é uma coisa só. Estou no ramo há 18 anos e, no início, já começava a ser um pouco “moda”. Nos últimos cinco anos, começou a despontar. No Brasil, houve pessoas importantes como o Laurent Suaudeau e o Claude Troisgrois [chefs franceses radicados no país], que começaram a valorizar os produtos brasileiros. Aí, na sequência, entrou o Alex Atala, que passou a valorizar não só os produtos brasileiros, mas também o cozinheiro e a cozinha criativa. Isso também é um reflexo de um movimento fora do Brasil, que aconteceu na Espanha, França, Itália, Peru. Mas eu acho que ainda tem muita coisa pra evoluir. A gente precisa de mais profissionais capacitados e cada vez mais se precisa de subsídio do governo, principalmente para pequenos produtores. Não é só ser valorizado, é ser subsidiado, senão o cara não sobrevive. Não é um bom negócio ser pequeno produtor no Brasil de produtos orgânicos ou naturais. Isso porque a gente só valorizou o latifúndio, a monocultura e perde tudo que é nativo para plantar soja e criar gado, que é mais rentável. Na verdade, a bancada ruralista na Câmara é gigantesca e fortíssima! O pequeno produtor está no último lugar das prioridades nesse ramo da agricultura.
De alguma maneira essa postura dos chefs faria uma pressão?
A gente tenta, através da Embratur, fazendo um movimento na área de turismo para exportar o Brasil de uma maneira menos estigmatizada, menos estereotipada da caipirinha e da feijoada. O governo tem uma força que ninguém tem, que é a grana e a permissão total para resolver as coisas. Eu acredito no poder da comunidade para pressionar, para se organizar para fazer algumas coisas, mas não, por exemplo, para ajudar os pequenos produtores. Precisa de um deputado que encampe isso, votar em alguém que tenha essa ideia. A gente está muito longe disso. Eu acho que as pessoas estão tentando, estão querendo, mas precisa votar melhor. São os deputados que realmente fazem o Brasil.
E nessa questão da imagem do Brasil lá fora, da caipirinha e da feijoada, o que está mudando na percepção deles em relação à nossa gastronomia, do que se come e se inventa aqui?
Na verdade, a gente teve um momento áureo e rápido que fez todo mundo olhar pra gente. E continuam olhando. Seja agora, por causa das manifestações, seja por causa da Copa, Olimpíadas ou o que seja. O Brasil está no mapa. Antes não estava, era só um país exótico. Acho que isso também reflete na gastronomia. Não sei se o grande público sabe o que é cozinha criativa, mas agora certamente as pessoas sabem que existe comida aqui, existe uma cozinha.
E com o Assiette Brésilienne, com ingredientes e receitas tão locais e específicos, você acha que isso pode reforçar o exotismo?
Vai mostrar a complexidade do Brasil, que todo mundo acha que é futebol, caipirinha e mulata. O programa reforça o valor do produto local, da receita. Ele reforça e valoriza a importância de você comer o que é seu, comprar o que cresce em volta de você, valorizar a sua cultura local. Se você for pro interior da França, Espanha ou Portugal, existe a mesma prática. A gente tem sorte de ainda ter essas pessoas, espero que elas nunca sumam. Precisa valer mais a pena você ter uma vendinha, produzir seu milho ou tirar seu leite do que o oposto disso. Ou pelo menos tem que valer tanto quanto ter um restaurante.