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O amargo gosto da desigualdade de gênero no mundo do café
Nunca fui muito do amargo. Segundo Glynn Christian, no livro “Como cozinhar sem receitas” (Editora Gutenberg, 2012), pode ser que meu paladar seja mais sensível a esse gosto do que outras pessoas. Por lógica, nunca gostei de café. Aprendi a tomar na época da faculdade por motivos quase óbvios, mas era aquele café bem melado, cheio de açúcar, do Diretório Acadêmico, que a gente apelidava carinhosamente de “cháfé”, por ser bem ralo.
Curitiba é conhecida Brasil afora não só pelo seu ar inovador, mas também por seus cafés e restaurantes sempre tão focados em qualidade e criatividade. Lembro que meu primeiro contato com bons cafés foi em Curitiba, antes mesmo de me mudar definitivamente para a cidade. Aprendi a gostar de fato quando comecei a entender sobre e, certamente, a tomar bons cafés. Percebi que o amargor não era regra, e que boas torras poderiam ter, na verdade, sabores bem agradáveis. Notei que eu tenho um tipo de café preferido, assim como vinho. Mas o que me fisgou mesmo nesse mundo complexo do café foi a recente campanha feita na cafeteria Supernova. Intitulada “Mulheres produzem café”, a ideia é trazer à luz mulheres envolvidas no processo de produção da bebida e que, muitas vezes, desempenham papéis importantíssimos sem que sejam reconhecidas.
Que o universo da gastronomia é um ambiente de muita desigualdade, em termos de gênero, estamos cansados de saber. Já parou para prestar atenção em quantas mulheres você vê nas listas de grandes prêmios como o 50 Best Restaurants e Michellin? Quem acompanha de perto a jornada da nossa estrela Manu Buffara sabe quanto suor e garra estão envolvidos.
Em conversas com o Luiz Melo (Supernova), a Laís Leão (inCities) e com a Rafaella Peres (projeto Mulheres Produzem Café), descobri que além de as mulheres serem também as mais impactadas pelas mudanças climáticas e pelo uso de químicos na produção de alimentos, o panorama de desigualdade tem uma raiz no machismo estrutural/cultural, já que, ainda que nós mulheres ocupemos muitos lugares no mercado de trabalho no geral, quando a produção de alimentos é voltada para casa ela é associada ao feminino, mas quando voltada para o comercial, para o elitizado, premiado e público, ela passa a ter associação ao masculino.
Se pararmos para pensar nesse contexto historicamente, enquanto as mulheres urbanas estavam lutando por seus lugares na sociedade e direitos de trabalho, as mulheres rurais estavam sempre na produção (condição permanente) desde o fim da escravatura, quando o trabalho começou a ser levado em conta. Hoje, em países em desenvolvimento, as mulheres são 43% da força de trabalho e, ainda assim, uma parcela ínfima é realmente dona de uma propriedade rural. O nome escriturado dessa propriedade ou o reconhecimento da produção dificilmente é da mulher.
Muitas produzem, mas não aparecem na assinatura dos produtos, não vemos muitas mulheres em campeonatos e, muitas vezes, nem em cafeterias especializadas. Assim como na gastronomia em geral, o ambiente do café é masculino. Na produção, a desigualdade é ainda mais forte, porque os avanços em relação à igualdade chegam sempre em atraso. A Rafaella me contou, por exemplo, que só depois de 2013, com o projeto Mulheres Produzem Café, por iniciativa do Instituto Emater, as mulheres cafeicultoras do Paraná começaram a ter um atendimento diferenciado e voltado à produção de cafés especiais.
Outro ponto é que existe também uma glamourização do trabalho feminino rural, sendo que muitas vezes o trabalho é pesado, exige força, não é delicado ou leve. Por isso, o projeto e a campanha começaram a mostrar quem são os rostos por trás da produção de café na região Sul. Estão mostrando a força, capacidade e responsabilidade que essas mulheres têm. No Brasil, já existem inúmeros outros projetos como esse, com o intuito de fortalecer e reconhecer a presença feminina onde quer que ela esteja.
Foi assim que eu acabei me apaixonando pelo outro lado do café, o lado em que o amargo vira causa. Sigo estudando e entendendo como posso fazer parte desses movimentos. Mulheres que me leem, vos peço: comprem local, comprem de mulheres, enalteçam o trabalho de outras mulheres. Procurem ao menos um desses projetos e ajudem a divulgar. Nós já ocupamos os espaços em que estamos e pertencemos, que a gente lute pelo desenvolvimento e reconhecimento dele, juntas.
E para adoçar a conversa, uma receita de brownie de cacau com café:
* * Gabi Mahamud é chef e culinarista, autora do blog e livro best seller Flor de Sal e fundadora do projeto social Good Truck.