Bom Gourmet
O que o Ceará nos ensina sobre cultura alimentar
Nos últimos dois meses tenho estado entre idas e vindas de Curitiba para Fortaleza, colaborando como mentora no Laboratório de Inovação Gastronômica da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco. A escola está localizada no bairro Mucuripe (nas margens de uma comunidade, com uma vista incrível para o mar de Fortaleza) e tem como finalidade oferecer cursos básicos, técnicos e avançados em panificação e confeitaria, além de tutorias para desenvolvimento de produtos e projetos, por meio dos Laboratórios de Criação. O público-alvo da escola são jovens e adultos que não teriam acesso a esse tipo de capacitação. Se me conhece um pouquinho, já sabe que eu fiquei feliz e honrada por participar desse projeto, né?
Minha primeira visita a Fortaleza aconteceu na segunda metade de dezembro. Conheci a Ana, que me escolheu como mentora de seu projeto: utilizar integralmente a jaca para alimentar crianças em situação de vulnerabilidade social. Sua proposta era explorar o fruto de forma a obter uma farinha de seus subprodutos.
Antes de qualquer teste fomos, obviamente, conhecer o Maciço de Baturité, região escolhida para o desenvolvimento do projeto, onde tem muita jaca mas já não há mais consumo. Começamos o dia conversando com Chiquin da Nata, produtor que nos contou que na infância, costumava comer o caroço de jaca cozido junto da família, na mesa do café. Almoçamos numa pousada que servia releitura de pratos regionais em um restaurante rodeado de natureza. Dentre as árvores, várias jaqueiras. Seguimos o caminho e paramos na casa da Dona Maria do Céu, famosa por fazer o melhor doce de jaca que a região já experimentou. Maria compartilhou que usava jacas para produzir doces pela abundância na região (e ela conseguia algumas unidades de graça). Foi assim que ela, mãe solteira, conseguiu ganhar a vida e criar as duas filhas. “Vez ou outra eu também usava o caroço pra fazer bolo, ficava bom, mas bom!”. O caroço, aliás, é o protagonista da receita deste mês.
Já de volta à Fortaleza, tive a oportunidade de conhecer o Mercado São Sebastião. Experimentei as frutas mais “doidas” que já vi (comer Jatobá foi uma experiência MALUCA, sério) e conversei com as pessoas mais sorridentes dos últimos tempos. Nesse contraste pude constatar que, na capital, as pessoas ainda consomem – ainda que pouco – a polpa da jaca, e que não fazem muito uso do caroço (mesmo que ele seja delicioso, super rico em amido e nutrientes). E, com o perdão da audácia, que lembra demais o sabor do pinhão.
Quis trazer essa minha experiência para cá porque percebi que, antes de desenvolver um produto com a jaca, eu e a Ana precisaríamos pensar em uma forma de ressignificar a fruta para a população interiorana. Me surpreendeu demais que eles não dessem a menor importância a ela enquanto aqui no sul e no sudeste nos deixamos cair em tentação por qualquer plaquinha que indique a tão desejada “coxinha de jaca”.
Reflexiva e questionadora que sou, fiquei pensando: o quanto disso não acontece no panorama geral? Temos mais de 200 alimentos entrando em extinção no Brasil (de acordo com o livro “A Arca do Gosto”, do SlowFood Brasil) enquanto continuamos importando frutas vermelhas e aspargos para satisfazer nossos gostos pessoais baseados num “endeusamento” do que vem de fora, e um certo desprezo do que é nosso.
No caso da jaca, nosso trabalho será tentar induzir uma mudança de percepção: a fruta, ao invés de remeter a uma época “triste” da vida, de escassez e fome, passa a ser vista como um tesouro da terra, que permitiu ao menos uma refeição em família em meio a seca e a falta de alimentos.
“O tesouro do maciço”, assim passou a chamar o projeto da Ana que, pra além da campanha de valorização, resultou numa farinha do caroço da jaca, com aroma e sabor de capuccino, e num leite, também do caroço, riquíssimo em amido, de sabor leve e adocicado.
Disso tudo, fica aqui minha provocação: dentre os alimentos ameaçados de extinção no Brasil, estão a pitanga, jabuticaba, arroz vermelho, entre outros que com certeza fazem parte da sua memória afetiva de alguma forma. Quando isso acontece com um alimento, leva também toda a cultura alimentar ao redor dele – memórias, histórias, saberes, costumes. Dito isso, sejamos francos: quanto valor damos aos ingredientes que fizeram parte da nossa história? E, se não damos, o quanto de responsabilidade temos em simplesmente mudar o olhar?
* Gabi Mahamud é chef e culinarista, autora do blog e livro best seller Flor de Sal e fundadadora do projeto GoodTruck
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