Eventos Bom Gourmet
Em defesa da flora e da fauna nativas
Mesmo que o tema da 11.ª edição do congresso Semana Mesa São Paulo seja a conexão entre o chef e o pequeno produtor, ainda permeia o debate o assunto do ano anterior: as raízes. Elas estiveram nas falas de boa parte dos chefs que se apresentaram no ciclo de palestras. Um deles foi o chef espanhol Joan Roca, que mostrou no segundo dia de evento que a alta cozinha conceitual do El Celler de Can Roca, considerado pela revista britânica Restaurant o segundo melhor do mundo, tem os dois pés fincados em Girona, sua cidade natal e também onde fica seu restaurante. Vem da tradição de pastorear ovelhas a inspiração para uma sobremesa criada pelo seu irmão Jordi. O padrão desenhado na pele de um peixe inspirou a apresentação de um prato preparado com sua carne. Uma folha de figueira liquefeita virou o coalho de um queijo de ovelhas feito com o leite da região. O público saiu do auditório aos suspiros.
Ao final da palestra, Roca desceu do palco e atendeu aos pedidos de fotografias de fãs fervorosos. Nos corredores, o público se derretia com frases do tipo “é de se apaixonar, não é?” ou “que poeta!”. No rosto do chef, a mesma expressão tranquila com que apresentou sua defesa ao uso das plantas alimentícias não convencionais (PANCs) e contra o uso da “tecnologia pela tecnologia”. “Para um cozinheiro, tão importante quanto cozinhar deve ser saber o que cozinhar. Usar técnicas só quando é extremamente necessário para preparar de forma mais eficaz e não porque está na moda liofilizar ou destilar”, aconselhou. Na sua equipe, Roca tem um botânico que o acompanha nas saídas a campo para identificar pequenas plantas e ervas que podem ser usadas na cozinha. “Conhecer seu entorno nos faz cuidar mais, e a cozinha pode ser uma ferramenta para mudar nosso entorno”, definiu Joan.
Ao apontar os caminhos para recuperar tradição popular e cultura e para o futuro da gastronomia, todos os chefs se voltam para a mesma direção: o uso de plantas, moluscos, algas e outros produtos da natureza diferentes dos tradicionais. Para Alex Atala, chef do restaurante D.O.M. e Dalva e Ditto, o Brasil é um país com biodiversidade impressionante e que “poucos países tem uma mão de obra tão servil e simpática quanto nós. Não é bacana ver um baiano ou cearense trabalhando como sushiman?”. Ele subiu ao palco com seu fornecedor de algas e moluscos, Ivan Taffarel, de Santa Catarina, e mostrou três preparos usando os itens.
Atala prende a plateia com a mesma facilidade com que segura um zest de limão cravo: descontraidamente entre o polegar e o indicador. Foi ele quem terminou de derreter a plateia sensibilizada por Roca.
Atala prende a plateia com a mesma facilidade com que segura um zest de limão cravo: descontraidamente entre o polegar e o indicador. Foi ele quem terminou de derreter a plateia sensibilizada por Roca.
Alex passou as algas codium e salicórnia para o público experimentar e a cada frase categórica proferida, era interrompido por uma salva de palmas e assovios. Uma delas foi ao lembrar de uma vez em que preparou escargot na Itália: “Abri as duas caixas de caramujos e eles começaram a fugir. São mais rápidos que eu! Joguei na panela com a caixa e tudo. Dá dó matar caramujo assim?” A plateia fez silêncio, mas sinalizou com a cabeça que não. “E dó de matar galinha?” O público riu ao lembrar a polêmica que o chef causou ao matar uma galinha ao vivo no simpósio MAD, na Dinamarca, em 2013. “Fui linchado. Eu tenho orgulho de matar galinha!”, falou bem-humorado, ao que o público foi à loucura em gritos, palmas e assovios.
Nova geração em consonância
Também no ciclo de palestras, Thiago Castanho, chef do Remanso do Bosque, em Belém do Pará, mostrou seu trabalho com um produto típico de sua região e ainda sem legislação: o mel de uruçu-cinzenta, uma abelha nativa da Amazônia, chamado pelo chef de iramel. “Chamamos assim para lutar por uma legislação própria para o iramel, que é diferente do mel produzido pela Apis melifera”, justificou. A Apis melifera é uma espécie híbrida que não é nativa do Brasil, e seu mel, facilmente encontrado nos mercados, tem teor de umidade de 20%, diferente do mel das abelhas brasileiras que não têm ferrão, que é de aproximadamente 35%. Pela legislação atual, só pode ser chamado de mel o produto das abelhas com até 20% de umidade, porque é um produto estável, que não terá contaminação de micro-organismos.
Mas é justamente a fermentação que interessa ao chef: Thiago destacou a riqueza de sabores e as propriedades que o mel de uruçu fermentado tem e espera que o trabalho dos cozinheiros repercuta na sociedade a favor dos pequenos produtores. “De nada adianta só nós usarmos esses produtos no restaurante. Este mel está no nosso menu degustação, é um volume muito pequeno. Faço a ponte entre o produtor e o público, mas também com nutricionistas, outros chefs, outros produtores de alimentos, como os cervejeiros. Assim vamos criar volume para essas pessoas trabalharem e ganharem o mercado”, disse.
A chef Manu Buffara, de Curitiba, participou pela segunda vez do ciclo de palestras do Semana Mesa e neste ano levou consigo o “case” da Associação de Criadores de Abelhas Nativas (Acriapa), de Guaraqueçaba. “A Acriapa é a primeira associação de melipolinicultores do Brasil a conseguir o SIF e é um modelo de sucesso para os outros criadores, tem gente que vai lá conhecer para aplicar em outras regiões”, contou. Por estarem em área de preservação ambiental, a flora nativa ajuda os enxames e é responsável por cerca de 70% da polinização das plantas. Entre elas, PANCs. A chef mostrou ao público dois preparos: um peixe marinado em mel de mandaçaia e uma sobremesa que mistura os méis de uruçu e tubuna. Para a oferta crescer, no entanto, não é algo instantâneo. “Para criar novas colmeias dessas abelhas é muito mais delicado que da Apis melifera. Pode levar anos para colher um quilo de mel, mas tem valor agregado, um produto que é nosso”, defende Manu.
O uso de um mesmo produto brasileiro trazido por dois chefs tão distintos quanto Manu, que é do Sul, e por Castanho, nortista, mostra que a nova leva fala em uníssono. Atala elogia: “Se você olhar toda essa nova geração brasileira que está se apresentando aqui, você vê que cada um interpreta o Brasil à sua maneira, mas tudo isso é Brasil. Que outro país tem tanta riqueza para mostrar? Com todo o respeito, mas podemos ser muito mais do que o Peru”, cravou. “Falta incentivo e que o governo comece a tratar nossos chefs como diplomatas, representantes do nosso país lá fora”.
O uso de um mesmo produto brasileiro trazido por dois chefs tão distintos quanto Manu, que é do Sul, e por Castanho, nortista, mostra que a nova leva fala em uníssono. Atala elogia: “Se você olhar toda essa nova geração brasileira que está se apresentando aqui, você vê que cada um interpreta o Brasil à sua maneira, mas tudo isso é Brasil. Que outro país tem tanta riqueza para mostrar? Com todo o respeito, mas podemos ser muito mais do que o Peru”, cravou. “Falta incentivo e que o governo comece a tratar nossos chefs como diplomatas, representantes do nosso país lá fora”.
*A jornalista viajou a convite da organização do evento.