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“No futuro cozinharemos tudo no forno combinado”
Há um elo entre a comida do passado, a contemporânea e a do futuro. E esta ligação está na evolução de pratos considerados requintados que se tornam o cardápio do dia a dia de grande parte da população. Assim como atualmente comemos os pratos da nobreza brasileira do século XIX, amanhã comeremos a culinária gourmet de hoje. “No futuro toda nossa comida será preparada no forno combinado [equipamento usado em cozinhas profissionais em que é possível assar, cozinhar, fritar, grelhar, gratinar, entre outras funções]”, acredita Francisco Lellis, chef paulista que desde 1980 mora na França e que esteve em Curitiba no dia 15 de setembro para apresentar o livro Os Banquetes do Imperador – Receitas e historiografia da gastronomia no Brasil do século XIX (Editora Senac São Paulo e Editora Boccato, 448 páginas), escrito em parceria com o chef e editor André Boccato.
Na obra, os dois chefs resgatam os hábitos culinários de Dom Pedro II e da nobreza brasileira por meio de 130 cardápios selecionados entre os 1.200 que integram a coleção Thereza Christina Maria da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
Lellis, que é formado em Letras pela USP, foi chef em vários restaurantes na França e hoje é professor de culinária na École de la Main d’Or de Paris, veio ao Brasil para participar de uma série de palestras. Em sua passagem no café-escola Senac-PR, no Paço da Liberdade, em Curitiba, ele conversou com o Bom Gourmet sobre seu livro e sobre o que podemos aprender estudando a gastronomia do passado.
Como surgiu a ideia de escrever Os banquetes do Imperador e como foi realizada a pesquisa?
Vim ao Rio de Janeiro para pesquisar a história da culinária brasileira na Biblioteca Nacional e me deparei com cerca de 1.200 cardápios da época imperial. É um campo muito vasto, em grande parte ainda inexplorado e com uma grande documentação. Fiz uma lista e selecionei 130 menus que chamavam atenção pela beleza gráfica ou pela importância gastronômica dos pratos. A pesquisa levou dois anos.
Além do aspecto culinário, o que revelam os cardápios dos banquetes de Dom Pedro II?
Os cardápios são como textos poéticos e eu, graças à minha formação em Letras, pude reconhecer neles toda a retórica da poesia, as figuras de linguagem, as metáforas, as metonímias…
E sobre os hábitos alimentares do imperador, o que os menus nos contam?
Por exemplo, que o peru, preparado em todas as maneiras, era o prato mais servido na corte imperial. Cada alimento tem uma simbologia e o peru, assim como o cisne ou o ganso, representava a caça e portanto era utilizado pelo imperador para mostrar aos outros, ‘olha como sou poderoso’. Outra receita muito comum era o presunto de York (cozido e defumado). Outra peculiaridade é que o salmão não se encontrava nas refeições porque na época não era um peixe valorizado, ao contrário de hoje.
Da época do império até os dias atuais, o que mudou na gastronomia brasileira?
A gastronomia brasileira se criou a partir de uma miscigenação de várias culinárias e hoje tem características únicas. E as coisas continuam mudando. Nos últimos anos começou uma valorização dos produtos locais. Nisso, Alex Atala foi o marco.
Mas já na época imperial, além das receitas europeias, havia uma tentativa de abrasileirar os pratos utilizando ingredientes locais como a farofa, o vatapá e a tapioca.
Sim. Isso é particularmente evidente observando os cardápios na ordem cronológicas, só que não sabemos muito sobre esses pratos abrasileirados. Por exemplo, peguemos o Peru à brasileira: não dá para saber como era preparado, o cardápio não contém essa informação. A mesma coisa vale para a feijoada completa que era até anunciada nos jornais da época: não temos certeza, mas podemos supor que fosse acompanhada de couve, mas havia farofa e laranja? Não sabemos.
O que podemos observar porém é que os pratos que eram da aristocracia hoje fazem parte dos hábitos alimentares corriqueiros dos brasileiros. Isso pode ser um indício que a comida gourmet de hoje será a comida cotidiana do amanhã?
Sem dúvida. A gastronomia segue uma evolução que acompanha as inovações tecnológicas: desde a pedra lascada passamos para a faca, à panela e até a panela de pressão. No futuro, não muito distante, toda a nossa comida será preparada no forno combinado.
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