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Quando fiquei sabendo da morte do mundialmente querido Anthony Bourdain, numa manhã nublada igual a tantas outras em Curitiba, entrei em um pequeno estado de choque que durou alguns dias — e acho que muita gente, do ramo da gastronomia ou não, sentiu as marolas desse tsunami. Os feeds de todas as minhas mídias sociais — que são obviamente focados em cozinheiros, restaurantes, cafeterias e em tudo que é relacionado ao mundo da alimentação — eram cheios de Anthony Bourdain. Vi cada foto clássica repetida dezenas de vezes, e cada foto em cada post era acompanhada do mesmo lamento incrédulo: por quê, Tony?

Anthony Bourdain trouxe muita gente pra dentro da cozinha.

Acho que ele sabia disso, e se detestava por isso em algum nível. Ele assistiu de perto à revolução gastronômica dos últimos 20 anos, quando os chefs se tornaram mundialmente famosos na mídia, passando de estrelas no seu círculo de colegas, amigos e alguns gourmands e jornalistas, para celebridades mundiais, com contratos milionários de franquias e programas de televisão.

Fazendo uma breve comparação, o mundo da gastronomia duas décadas atrás era como o mundo da arquitetura — alguns grandes nomes conhecidos de uma parcela do público, com estrelas brilhantes que ultrapassavam a parede da bolha e se tornavam celebridades de fato, com livros publicados, programas de televisão, entrevistas e fama. Um Frank Gehry estava para um Paul Bocuse assim como um Santiago Calatrava estava para um Marco Pierre White. A grande maioria continuava assando as solas dos pés em turnos de 10 ou 12 horas na cozinha, sem perspectivas além de uma infinidade de filés de peixe grelhados pelo resto da vida profissional.

Anthony Bourdain começou sua carreira lavando pratos e desfolhando cabeças de alface, como tantos outros, mas teve a oportunidade de conhecer a França quando pequeno e de estudar em uma escola renomada de cozinha. Mesmo vindo de uma posição social privilegiada, sendo branco, americano e com uma educação formal de respeito, começou por baixo, sem privilégios, e escavou a própria estrada com bolhas e queimaduras nas mãos.

Demorou cerca de 15 anos para que ele tivesse qualquer respeito dentro da comunidade de cozinheiros, e ele era um ótimo cozinheiro. No entanto ele mesmo sabia que não possuía a disciplina necessária para comandar brigadas e equipes em restaurantes ao redor do mundo. Ele era muito punk, muito subversivo, muito afeito à bebida, às carreiras de cocaína e ao drinks de madrugada após o fechamento dos restaurantes.

A sorte de Tony Bourdain — e nossa sorte também — é que ele sofria de um mal deveras desconhecido mas muito apreciado: a hipergrafia. Este é o nome bonito que se dá ao desejo interior de escrever. Escrever, clarear e organizar as próprias ideias através da escrita. Acredito que a hipergrafia seja mais comum do que imaginamos, mas que o pequeno pavor da página em branco e da falta de costume da escrita impeça muitos potenciais escritores de dar aquele dolorido primeiro passo de sentar em algum lugar tranquilo e desfiar os pensamentos no papel — ou no teclado.

Anthony Bourdain escrevia muito. Lia muito, também, e o primeiro hábito não funciona sem o segundo: quem não lê não sabe escrever. A prosa do cozinheiro era leve, espirituosa, cheia de figuras de linguagem originais que arrancavam sorrisos relutantes daqueles que estavam dentro do mundo que ele descrevia, e exclamações de incredulidade dos que estavam do lado de fora. Bourdain foi o primeiro a revelar, sem medo, que pedir peixe nos restaurantes de Nova Iorque às segundas-feiras provavelmente era uma péssima ideia, já que as entregas de peixe fresco eram feitas às sextas e terças. Muitos apreciadores da carne bem-passada foram pegos de surpresa ao descobrir que seus filés torrados eram carne do fundo do freezer, ou requentada rapidamente debaixo de uma salamandra ou mesmo (sacrilégio!) no forno de micro-ondas.

Os cozinheiros do mundo todo reagem aos textos de Anthony Bourdain com um misto de mea culpa e triunfo — sim, é tudo verdade, mas quem manda você pedir carne bem-passada? Ele descia o facão de açougueiro dos dois lados — em cozinheiros e chefs e donos de restaurante irresponsáveis, incompetentes e grosseiros, mas também em clientes irascíveis, mal-educados e metidos a gourmand. Ele nunca teve medo de arrepiar as penas de ninguém — mas também distribuía elogios emocionados e eloquentes aos colegas e clientes em quem ele reconhecia um espírito irmão.

Quando eu li “Cozinha Confidencial” pela primeira vez eu já estava no ramo da gastronomia há alguns anos, e para ser bem honesta só tomei conhecimento de seus livros depois de ler a maravilhosa memória de Gabrielle Hamilton — “Sangue, Ossos e Manteiga”, de quem Bourdain era fã declarado. Mesmo sendo confeiteira me reconheci naquelas descrições, nas histórias de cozinha, nos discursos inflamados, na eterna pulga atrás da orelha, no impulso incontrolável de encontrar algo para reclamar, um dedo para apontar.

Hoje brinco dizendo que sou da Escola Anthony Bourdain de Reclamação, ou da Escola Rita Lobo de Irritação, porque compactuo da mesma vontade de disseminar o conhecimento sobre a alimentação e hábitos alimentares, cultura, educação e consciência. Não seria ingênua de dizer que precisamos de mais pessoas nos dizendo o que fazer o tempo todo — o mundo hoje parece feito dos “fiscais de vida alheia”.

Por mais que eu ache uma bobagem seguir a vida de celebridades que são apenas outros seres humanos, e ache a maior perda de tempo do mundo ficar lendo sobre quem está namorando quem, não vou julgar ninguém por isso. Por mim todo mundo pode namorar quem quiser — com consentimento adulto, obviamente — ver os programas que quiser, beber e fumar o que quiser, desde que não incomode nem prejudique os outros. Brinque na sua caixa de areia, mas sem beliscar os coleguinhas.

Quando se trata de hábitos alimentares, no entanto, de cozinhas de casa cheias de pacotes plásticos coloridos, de lugares onde vegetais e frutas não chegam, de pratos de buffet por quilo cheios de comida amarela, de clientes que chegam em restaurantes querendo ditar regras sob ameaça de resenhas negativas em mais uma plataforma de “avaliação de estabelecimentos” — melhor nem me perguntar o que eu acho desse tipo de coisa — me sobe esse sangue proverbial de dizer que sim, tá tudo errado.

A necessidade de se alimentar todos os dias é uma das poucas coisas que une todos os seres humanos, essa maluquice de pegar algo do mundo externo e colocar dentro dos nossos corpos para fazer as máquinas funcionarem — máquinas que são feitas de água e proteína e gordura e cálcio mas que sabem transformar outras máquinas diferentes em energia para sobreviver.

Alimentação é importante, saber se alimentar é importante, saber comprar e produzir o que você coloca para dentro é das coisas mais importantes que existem — porque sim, comer é um ato político, mas também é um ato social, ecológico e que tem consequências que vão muito além da circunferência das nossas barrigas. Anthony Bourdain foi um dos pioneiros a começar a remexer as fundações dos hábitos alimentares, questionando tudo, desde a produção do nosso alimento à cultura maligna dos fast-foods e da comida congelada cheia de conservantes, exaltando sempre a figura suada do cozinheiro brigando com o fornecedor para que traga produtos de melhor qualidade todos os dias.

A aproximação das cozinhas com o produtor rural, e consequentemente do cliente final com a origem do alimento que consome deve muito a Bourdain e aos seus textos ácidos. Sem esquecer obviamente dos seus programas de televisão, mostrando a cultura alimentar de cada país, por menor e mais esquecido que fosse, desfilando a riqueza da culinária local em detrimento da massificação alimentar promovida pelos bilhões de dólares da indústria alimentícia multinacional.

O movimento Slow Food, os restaurantes farm-to-table, as demandas por insumos com pequena pegada de carbono, a valorização de ingredientes locais e muitas outras iniciativas relacionadas à qualidade do alimento são movimentos que só alcançaram a proporção que tem pelo esforço coletivo de centenas de milhares de profissionais ao redor do mundo. Este mundo é hoje um lugar um pouco melhor por isso, mas não tenho dúvidas de que o nosso cozinheiro rabugento preferido teve um papel fundamental na disseminação e na fama deste tipo de ação de volta às raízes da cozinha.

Carudo, rabugento e carinhoso, Anthony Bourdain nos ensinou a sonhar lendo sobre micro cozinhas sujas no Vietnã, a cobiçar pratos preparados em lugares remotos, e nos colocou dentro das cozinhas assépticas e impecáveis dos grandes restaurantes estrelados. Nos ensinou a dizer não para a comida de má qualidade feita sem compromisso e sem amor. Nem tudo que ele fez na vida foi nobre e cheio de boas intenções, mas o legado que permanece é sem dúvida positivo e inspirador.

Ele foi embora muito cedo e ainda vamos passar muitos anos lamentando esta morte. Acredito que cabe a nós todos continuar o trabalho irreverente e cheio de malícia benevolente deste escritor com bolhas nas mãos.

Obrigada, Tony.

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Texto originalmente publicado no Medium.

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