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Peru tem 1.300 variedades de batatas que são exaltadas na cozinha andina
Chahuaytire, Peru – Gumercinda Quispe é descendente dos incas e aqui, nas alturas dos Andes, a mais de 3.800 metros acima do mar, ela está fazendo uma sopa substanciosa e picante de batata, a quacha chuño.
Para isso, usa o tubérculo fresco e o chuño, versão branca, dura e desidratada que é preparada logo ali ao lado, em um processo de conservação centenário que inclui deixá-las de molho em um córrego gelado, pisoteá-las para retirar a casca e deixá-las secando ao sol.
Eu adoro batata, mas ela não tem tantas variedades na minha terra natal, a Índia, como aqui no Peru; apesar disso, é muito apreciada, e considerada uma guloseima baratinha. Preparada de milhares de formas diferentes, quase sempre com uns bons punhados de temperos e especiarias, não só é servida em todas as cidades e vilarejos às refeições como também faz render muitas guloseimas vendidas na rua. Eu queria aprender um pouco mais sobre ela em seu local de origem.
No vilarejo montanhoso de Chahuaytire, perto de Pisac, no sul do Peru, Quispe e eu nos sentamos a uma mesa perto do fogareiro do restaurante onde ela trabalha. Lá fora, o sol brilha em um céu gelado e profundamente azul.
“Põe um pouco do molho na sopa e vai tomando direto da tigela”, ensina ela, apontando a mistura esverdeada do uchucuta que preparara. “Uchu” significa “pimenta” na língua quechua, e “cuta”, “solo”.
O condimento, que mesmo esta indiana que vos fala achou forte, não é só ardido graças a uma das dezenas de pimentas nativas do Peru, mas também azedo, devido aos limões trazidos pelos espanhóis, e excepcionalmente cheiroso graças ao huacatay e outras ervas que crescem nas encostas.
Houve um tempo em que os incas usavam somente as plantas na natureza, mas hoje, depois de séculos de influência espanhola, seus descendentes vão ao mercado e compram uma asnapa, o buquê que pode incluir a erva do Novo Mundo, mas também adições tradicionais como coentro, hortelã, orégano, salsinha e estragão.
Há batatas de todas as texturas e cores. E você encontra muitas nas feiras e mercados: vermelhas, azuis, amarelas e rosadas, às vezes mostrando uma combinação bicolor quando cortada. Dependendo da variedade, a textura muda se ficar ao sol durante alguns dias antes do cozimento, pois o processo as torna mais macias.
Algumas têm o formato de pata de onça, outras, da do gato; há também as que lembram o focinho da alpaca. Natural dos Andes, no Peru e noroeste da Bolívia, a batata foi domesticada há mais de dez mil anos, mas, ainda assim, novas variedades são descobertas o tempo todo.
Os chamados “bancos” – como o que existe na região de Pisac, que armazena sementes de 1.300 variedades em câmaras com temperatura controlada – estão sempre à procura de novidades, da mesma forma que as dezenas de chefs nativos, em busca de ingredientes indígenas pouco comuns.
O processo de desidratação através do congelamento para o chuño era só um dos vários métodos utilizados para aumentar a vida útil do tubérculo depois de colhido. A corrida e a caminhada eram os principais meios de transporte para a grande maioria dos povos andinos (certamente para os incas); podiam facilmente carregá-la seca e preparar um refogado rápido com as ervas locais, pimentas e água abundante dos riachos toda vez que batesse a fome.
As batatas desidratadas assumem diversas formas no Peru: às vezes, parecem pedregulhos, duras ou macias, brancas ou roxas; outras lembram mais o cascalho grosso, nas mais variadas cores, mas também podem ser molinhas, com gosto e aroma semelhante ao do tofu fermentado ou de um queijo maturado. Cada uma tem um sabor e textura diferentes.
O guia nativo que viajou comigo pelos Andes ainda tem o hábito de levá-las consigo (às vezes até na versão em pó), ao lado da carne de lhama seca, ingredientes essenciais para uma sopa que considera parte de sua herança cultural.
A batata recebe um tratamento soberbo por todos os lugares onde passei. No Sumaq Hotel, em Águas Calientes, por exemplo, provei o pastel de papa, uma torta macia em que ela aparece cortada bem fino, combinada com bacon e queijo.
A papa a la Huancaina, que surgiu em Huancayo, região central das terras altas, é considerada por muitos o prato nacional – e, de fato, eu me deparei com ela em todo lugar, até em uma lanchonete em Machu Picchu. O prato mistura batatas e ovos cozidos, em fatias, distribuídos sobre uma cama de folhas de alface, temperados com um fio de azeite e o molho local, cujo ingrediente principal é a pimenta laranja, de forma alongada e perfumada, a aji amarillo.
Talvez meu prato favorito seja a causa, que lembra a lasanha, feita em camadas, mas é servida fria – embora algumas versões também fiquem excelentes à temperatura ambiente.
A diferença é que, em vez de massa, usa-se a batata, amassada e temperada com pasta de aji amarillo, suco de limão, azeite e sal, distribuída em uma, duas ou até três camadas. Entre elas, pode-se espalhar salada de frutos do mar, de verduras, de frango, ou, como é comum na região amazônica, de carne de porco com cebola, ainda mais apimentada, graças à pimenta charapita.
Qualquer que seja a versão, é sempre deliciosa – e, para as regiões mais quentes do Peru, refrescante e tão reconfortante quanto o prato de sopa das montanhas andinas.
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