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Padarias dos EUA trocaram o trigo por centeio
Qualquer gourmet mais ousado que já se aventurou pelas florestas da moderna cozinha nórdica muito provavelmente se deparou com algum tipo de pão de centeio: tem o maravilhosamente borrachudo rugbrod do Great Northern Food Hall, na Grand Central Terminal, em Nova York; o limpa sueco e cheiroso do Plaj, em São Francisco, e a torrada rústica e escura do Bachelor Farmer, em Mineápolis.
Só que nenhum deles é o pão de centeio que os norte-americanos conhecem. Ao contrário do estadunidense, que é macio, tem massa branco-amarelada e sabor levemente acre, as versões escandinavas e de outras partes da Europa setentrional são cheirosas, cheias de irregularidades e um sabor que lembra o de nozes. Podem ser escuros como bolo de chocolate e tão picantes quanto biscoito de gengibre. Geralmente tem um azedume todo característico e é inegavelmente delicioso.
Surfando na onda do interesse por grãos antigos, o centeio está surgindo em várias cozinhas influentes, na forma de macarrão, mingau, brownies e como opção mais gratificante, no pão.
“O rugbrod é como o vinho na França e o azeite na Itália. É mais que alimento; é história, cultura e agricultura”, afirma Claus Meyer, dono do Great Northern Food Hall e de diversas empresas de alimentos nórdicos em Nova York, além de fundador do Noma de Copenhague, chef e “catequista” panificador René Redzepi.
O centeio, como a cevada e a aveia, é um grão antigo muito comum em áreas de clima frio e úmido. Antes que a agricultura moderna e o transporte disponibilizassem o trigo em todo lugar, ele era a melhor opção para a preparação de pães na maior parte do norte da Europa, da Rússia e nos países do Báltico, seguindo rumo oeste, passando pela Polônia, Hungria, Áustria, Alemanha e Holanda e subindo para a Escandinávia.
As versões mais tradicionais (como o escuro pumpernickel) exigem fermentação lenta e devem ser assados em temperaturas bem altas, em ambiente úmido; na Islândia, por exemplo, eles são selados e assados no subsolo, com o vapor natural das fontes geotérmicas. Quase sempre são azedos, consequência do processo lento de levedação que exigem, ao contrário dos brancos, que são neutros e adocicados. E também densos e pesados, o que tornou os pães de trigo fofinhos que surgiram no século XIX ainda mais atraentes.
E foi assim que, embora extraordinariamente resistente e fácil de cultivar, o grão foi deixado de lado por muitos produtores escandinavos, sendo usado quase que somente para alimentar os animais e como opção de cobertura para devolver nutrientes ao solo. Segundo Meyer, nas décadas de 70 e 80, o pão branco macio já se tornara o ideal e, com isso, os padeiros comerciais e artesanais abandonaram as versões marrons e começaram a fazer brioches e baguetes franceses delicados e pão branco no estilo norte-americano.
Porém, na Escandinávia, a tradição do smorrebrod (smorgas em sueco) ajudou a manter o pão de centeio vivo – afinal, os sanduíches abertos servidos ali no café da manhã, no lanche, no almoço e/ou todas as opções anteriores não podem ser montados em uma superfície porosa e molinha. “O amargor do próprio centeio e a picância da casca meio chamuscada são essenciais”, ensina Meyer.
Para o autor de um manifesto pelo locavorismo assinado por dezenas de chefs escandinavos, em 2004, ganhar respeito pela tradição culinária nórdica é uma paixão. Ele se tornou chef em uma época em que as culinárias francesa e mediterrânea eram glorificadas e a escandinava mal era notada no âmbito mundial.
“Na época eu achava que não havia alimento do qual pudesse sentir orgulho, literalmente.” diz. E foi assim que a produção de pães tradicionais se tornou uma missão, levando-o a sair em visita a moinhos antigos e a produtores, estimulando-os a cultivar grãos antigos.
Na última década, muitos outros padeiros nórdicos, como Johan Sorberg e Camilla Plum, assumiram compromisso semelhante, mas Meyer é o único a oferecer rugbrod em plena agitação da Grand Central e no descolado bairro de Williamsburg, no Brooklyn, preparando-o com cepas escandinavas do grão cultivadas no Maine por agricultores que agora estão apostando em sua revitalização na Nova Inglaterra.
Como acontece nas cozinhas nórdicas tradicionais, o pão é aproveitado de inúmeras formas: fatiado e frito serve de biscoito, esmigalhado e cozido faz parte do mingau do café da manhã (o chamado ollebrod), além de ser usado para iniciar a fermentação da rye ale da Brooklyn Brewery.
Na região metropolitana de São Francisco, Chad Robertson, da Tartine Bakery, foi um dos primeiros padeiros norte-americanos modernos a investir no rugbrod, em parte estimulado pela repentina demanda por opções integrais e com pouco glúten; hoje, chefs nos dois extremos do país seguem seus passos.
O que chamamos de pão de centeio, embora não seja integral, também não é só uma adaptação americanizada da versão europeia. Segundo Stanley Ginsberg, autor de “The Rye Baker”, há toda uma tradição do Velho Mundo por trás da nossa opção, apesar da presença da farinha de trigo e da algaravia para dar mais sabor. Na Ucrânia e no sul da Polônia essas combinações são comuns, como também o “tempero de pão”, uma mistura de algaravia, aniz, erva-doce e sementes de coentro.
O pão de centeio “judeu” do leste europeu se tornou comum nos EUA, mas como o bagel, ele também vive em constante estado de perigo; uma exceção é a Orwasher’s, em Manhattan, onde as fornadas produzidas com a variedade sissel saem diariamente. O dono, Keith Cohen, o chama de “pão comunitário” e permite que os clientes levem quantos quiserem.
Acontece que os norte-americanos continuam desconfiados em relação não só ao centeio, mas a outros grãos primitivos como a espelta (trigo-vermelho) e o einkorn, valorizados mais por suas propriedades nutritivas que pelo sabor.
Chefs como Kevin Adey, do Faro, no Brooklyn, pretendem mudar esse quadro; ele, por exemplo, prepara macarrão com a farinha de centeio durante todo o inverno, já que seu sabor característico que lembra nozes casa perfeitamente com ragus e molhos de cozimento lento.
“O pessoal diz que não gosta de centeio, mas a minha teoria é a de que não curte é a algaravia. O ser humano foi programado para se apaixonar pelo sabor e o aroma dos grãos recém-moídos.”