Eventos Bom Gourmet
Reflexões sobre tradição encerram congresso
A chef “expedicionária” Ana Luiza Trajano abriu o terceiro e último dia do ciclo de palestras da 11.ª Semana Mesa enchendo linguiça. No sentido literal: trouxe Patricia Polato, a décima geração da linguiçaria paulista Real Bragança, para mostrar ao público como fazer uma linguiça de porco com castanha-do-pará. O animal é criado solto em Mococa, cidade na divisa de São Paulo com Minas Gerais, por João Neto, e se alimenta de frutas e alguns cereais. A castanha vem do Acre, da produção familiar de José Felício, que produziu seu próprio maquinário para descascas e extrair o óleo.
A chef já fez mais de 40 expedições pelo Brasil para conhecer produtores e culturas distintas que formam o país. Com estas descobertas e pesquisas, Ana Luiza compõe o cardápio do Brasil a Gosto, seu restaurante no bairro Jardim Paulista, em São Paulo. Ela descreveu o sabor da carne de porco Monteau que João cria como inigualável – “vem temperado da natureza” –, resultado de como ele é criado e alimentado. “É como meus bisavós criavam animais. Deixando a natureza fazer o trabalho. Quando eu faço, só atrapalho”, comentou João.
Ana Luiza propôs à plateia – composta majoritariamente de alunos da graduação em gastronomia – uma nova postura do chef diante dos fornecedores: o de ser co-produtor. Dentre os deveres de um co-produtor, a chef destacou a responsabilidade social e ambiental. “Precisamos nos interessar por agricultura e agropecuária, saber se quem trabalha com esse produtor é bem tratado e também conscientizar o público”, enumerou. Quando começou a trabalhar com a carne de porco do “seu João e da dona Renata”, como ela chama o casal de criadores, fez questão que fossem ao restaurante provar a pururuca de porco. “Eu tremia, porque ele é o cara, ele é que é meu crítico”, confidenciou ao público. “O produtor quer que seu ingrediente tenha o máximo de qualidade e que seja bem usado. Se eu serei a ponte entre o produtor e o público, preciso traduzir a essência em um prato, fazer o ingrediente aparecer com o máximo de sabor”, defendeu.
Floriano Spies, chef do restaurante Floriano Spies Cozinha de Autor, de Porto Alegre (RS), também falou sobre emoção e de como a maneira de criar animais interfere no sabor da carne. “Me emociono toda vez que passo pela porteira da Fazenda Palomas. Meu coração até bate mais forte”, disse. Ele levou ao evento o engenheiro agrônomo Atílio Ibagoryen, dono da fazenda Palomas, que cria Angus, ovelhas e outros animais em uma fazenda da região da Campanha, no Rio Grande do Sul. O clima, a vegetação nativa de gramíneas e pequenas plantas e as raças escolhidas para a fazenda seriam o terroir perfeito para a carne marmorizada que Atílio produz.
Com uma faca embainhada na guaiaca (cinto típico da vestimenta gaúcha), o produtor contou sobre as dificuldades de certificar sua carne como orgânica ou natural e que já tomou três calotes de frigoríficos. Segundo o chef Floriano, a vigilância sanitária tem um controle rígido que é positivo, mas que funciona com dois pesos e duas medidas – o criador e abatedouro industriais teriam muito mais facilidades que os pequenos e artesanais. “Gaúcho não se entrega. Não estou com essa faca à toa, a gente vai até o fim nessa luta”, brincou Atílio, referindo-se à legislação.
Tecnologia e tradição
Dois integrantes do G11 se apresentaram na quarta-feira: o japonês Yukio Hattori e o francês Michel Bras. Ambos introspectivos e, de certo modo, filosóficos. Hattori é médico e é a quinta geração a presidir a Hattori Nutritional College, fundada no fim dos anos 1930 por sua família. Ele mostrou ao público sete “artes” japonesas em extinção: os utensílios de cozinha da culinária tradicional. Facas e raladores feitos à mão da mesma maneira há décadas, caixas para obentô e palitos de madeira, uma peneira feita do pelo do rabo de cavalo, chamada koshiki, e a esteira de bambu makisu (comumente conhecida por dar forma ao sushi) são alguns dos artesanatos que Hattori disse estarem sumindo do país. Traduzido simultaneamente pelo chef e sócio do restaurante Kinoshita, Tsuyoshi Murakami, Hattori estava bem-humorado apesar de o tema o preocupar.
“Existe a pessoa que cozinha e a pessoa que produz o ingrediente. Entre ambas está quem faz os instrumentos de cozinha, que estão diminuindo porque perdem mercado para a indústria”, explicou. “O resultado de ralar um nabo com um ralador simétrico e um ralador feito à mão, que tem tamanhos de lâminas e espaçamento entre as linhas propositalmente diferente, é fácil de perceber. O industrializado faz o vegetal soltar água”. Ao sumir estas tecnologias, some também a culinária tradicional e parte valiosa da cultura do país. “Temos que colocar estes artistas no colo porque eles têm de continuar produzindo”, poetizou Hattori.
Michel Bras, francês da região de Aubrac, fechou a 11.ª edição do evento sabatinado pelo crítico de gastronomia Josimar Melo. Desde 1999, o chef coleciona estrelas no guia Michelin, mas não se vê como parte de um mundo gastronômico “afetado”.
Quando ele e a esposa decidiram ficar na cidade de Laguiole e abrir um restaurante, foram julgados pela comunidade, que acreditava que o futuro estava em Paris, e não no campo. Michel, apreciador do deserto e do silêncio, demonstrou devoção pela cozinha: “Cozinhar é um ato de amor. E o produtor também sente um amor inigualável pelo que faz. Gosto do produtor por causa da relação dele com sua produção”, disse. Bras é conhecido por trabalhar de forma surpreendente com vegetais e Josimar o questionou: até que ponto é a sensiblidade ou a técnica que fazem um bom cozinheiro? “Não podemos ser cozinheiros sem ter técnica, assim como não podemos ser bons músicos ou outra coisa assim. A cozinha atualmente está a serviço da técnica, ao passo que deveria ser a técnica a serviço da cozinha”, resumiu. “Demorei dois anos para chegar à receita do coulant gâteau [bolo de chocolate que ‘inspirou’ o petit gâteau mundo afora], para deixá-la do jeito que eu a imaginava”. Para um jovem chef que quis saber como fugir da glamourização da profissão, Bras foi sucinto: “Os meios de comunicação você deixa de lado e faz como eu”. O recado foi: concentre-se no seu trabalho.
*A jornalista viajou a convite do exemplo.