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Trigo de terroir paranaense quer transformar os pães artesanais no Brasil
Primeiro aconteceu com o café especial, depois com o malte da cerveja artesanal. Só faltava o trigo. Se boa parte da matéria-prima brasileira melhorou ao longo das últimas duas décadas graças à demanda de baristas e mestres cervejeiros, é a ascensão dos padeiros artesanais a responsável por mostrar que o Brasil também sabe fazer farinha “especial” — com terroir (cultivado em uma região específica com características próprias).
O cenário deste novo movimento é o Paraná, maior produtor de trigo do Brasil, com a safra deste ano estimada em 3,2 milhões de toneladas. E ali, na região dos Campos Gerais, a protagonista: Moageira Irati, no mercado há 70 anos. Na última segunda-feira (16), a empresa anunciou o lançamento do projeto “Trigo de Origem”, uma iniciativa que promete mudar a relação entre padeiros (profissionais e amadores) e produtores.
A partir de um QR Code na embalagem, o consumidor pode conferir no smartphone todos os detalhes sobre a origem do produto em mãos – da variedade de trigo ao nome da fazenda responsável pelo cultivo. Aí entra o fator inédito, que difere este novo produto da “Importada de Irati”, lançada em 2017 pela moageira em parceria com Oscar Luzardo, da La Panoteca e do Slow Bakery Institute.
Cada lote da “Irati Origem” é produzido por um único produtor. “Antes, era possível rastrear a região da produção, mas a farinha era feita com trigo de um grupo de produtores paranaenses”, explica Marcelo Vosnika, sócio da Moageira Irati e idealizador do projeto. Segundo ele, a mistura de muitos tipos de trigo em um mesmo silo é o que impede a qualidade constante das farinhas brasileiras.
A forma de resolver o problema é através da segregação, processo que consiste na moagem separada de cada variedade. Imagine que cada tipo de trigo é indicado para um preparo diferente, como massas, pães ou biscoitos. A partir do momento em que se processa tudo junto, vindo de produtores diferentes, não há como criar um produto ideal para cada finalidade culinária.
“Os produtores não se preocupam com a segregação, mas no Paraná nós temos trigos de qualidade canadense, considerados os melhores do mundo, ou argentina, francesa. Só que falta infraestrutura [brasileira]”, argumenta Vosnika. Segundo ele, a Moageira Irati faz a segregação do trigo há 20 anos. O processo, porém, era destinado às marcas industriais. É a primeira vez que isso ocorre com fim artesanal.
Dos 2.200 produtores rurais que trabalham com a moageira para fabricar as 90 mil toneladas anuais de farinha de trigo de commodity, três participam da nova parceria. Orlando Osten, da Fazenda Pilar, de Cornélio Procópio; Dionísio Bertolini, Fazenda Tronco, de Carambeí; e Reynaldo Garmatter, da Fazenda São José, de Palmeira.
A estimativa é que a moageira consiga produzir cerca de 3 mil toneladas de “farinha especial” por ano, o que representa 1% da fabricação geral da moageira.
Uma farinha especial para panificação
O produto começou a ser desenvolvido há um ano e meio. Desde o início, foi pensado para atender ao mercado da panificação artesanal, especialmente aquela feita com fermentação lenta. “Todas as farinhas podem ser feitas dessa forma [com segregação total do trigo], mas escolhemos essa porque é a mais difícil de ser feita. Queríamos provar que é possível”, aponta Vosnika.
A variedade selecionada para o desafio foi a TBIO Sossego, desenvolvida pela Biotrigo Genética, uma das principais empresas de pesquisa e melhoramento de sementes do país. Usado há três anos pela Irati, é o trigo com melhor desempenho na panificação.
O resultado foi confirmado por pelo menos 15 padeiros artesanais de Curitiba, incluindo o curador do projeto, Eduardo Freire. Uma farinha com alta absorção de água capaz de produzir pães leves, úmidos e com casca crocante – critérios indispensáveis para pães de fermentação natural impecáveis.
Formado pelo San Francisco Baking Institute e à frente da panificação do Lucca Cafés Especiais há três anos, Freire usou os laudos técnicos das farinhas mais utilizadas pelos padeiros artesanais de São Francisco, Califórnia, como base para a criação da “Irati Origem”. Depois da França, a cidade da costa oeste dos EUA é referência mundial quando o assunto é slow bakery. “Tive acesso a índices de força do glúten, extensibilidade e elasticidade da farinha e atividade enzimática, para citar alguns”.
Farinha 100% paranaense
“Farinha boa é farinha importada”. A frase virou praticamente senso comum entre os brasileiros acostumados a reverenciar o que vem de fora. “Sim, saem farinhas maravilhosas de lá [Itália e França], mas elas são sacrificadas num processo de logística dos mais árduos. Você estufa um contêiner, atravessa o Equador em temperaturas absurdas. Depois chega no porto de Santos e demora dias e mais dias para distribuir isso. Quando chega na padaria, cadê aquele aroma de frescor maravilhoso?”, cafirma Divanildo Carvalho Jr, que trabalha com trigo há 30 anos e é um dos gerentes do projeto Trigo de Origem.
O movimento, explica ele, sugere olhar para os insumos de qualidade que existem perto de nós. “Tem até uma palavra para isso: locavorismo”. Parece o início de um caminho promissor. “Vejo o projeto como uma evolução natural da ‘Importada de Irati’, que foi um primeiro passo focado principalmente na origem”, comenta Oscar Luzardo, da La Panoteca.
Seus votos representam um desejo comum entre os padeiros artesanais de Curitiba. “Que existam terceiros, quartos passos como este tanto de parte da Moageira Irati como de outros moinhos para fortalecer a qualidade e a diversidade cultural do pão, em especial aquelas que são parte das tradições paranaenses”.
No dia 26 de outubro, os responsáveis pelo projeto Trigo de Origem estarão em um dos painéis do Mesa São Paulo, maior congresso de gastronomia da América Latina, para apresentar o novo produto ao Brasil.
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A farinha “Irati Origem” estará à venda em embalagens de 1kg (branca e integral) a partir da próxima semana (23/09) no e-commerce da marca. Embora o preço final ainda não esteja definido, será mais acessível que as farinhas importadas, que custam até R$ 15 o quilo. Os produtos também poderão ser encontrados em padarias artesanais de Curitiba e, em novembro, na cidade de São Paulo.
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