Porto Alegre (RS) assistiu, atônita, ao lago Guaíba invadir ruas, casas, mercados e hospitais. As águas transbordaram ainda na última sexta-feira (3), no centro histórico, como na enchente de 1941. Agora, foram avançando mais e mais, alcançando regiões antes inimagináveis.
Cinco dias depois do início da enchente, a água ainda não desceu, está num platô, variando de 5,3 metros a 5,2 metros. Deve demorar ainda três dias para começar a baixar, mas a normalização do nível do Guaíba pode acontecer em até 40 dias, avaliam especialistas.
“É um evento que a gente nunca experienciou. Aposto, de forma otimista, mais de 20 dias para chegar na cota de 3 metros e, para normalidade, para o 1,8 metro, quando os moradores da região das ilhas conseguem voltar para a casa, vai entre 30 e 40 dias”, analisa o engenheiro civil e doutor em recursos hídricos e saneamento ambiental do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Dornelles.
A avaliação é compartilhada pelo hidrólogo Fernando Fan, também professor do IPH da UFRGS, que ressalta que até a próxima segunda-feira o nível pode se manter em 5 metros, baixando, depois, para 4 metros. “Daí para diante temos um pouco de incerteza em relação à chuva prevista para semana que vem. Não ocorrendo chuvas na bacia hidrográfica, na próxima semana, a tendência é que a gente siga esvaziando o sistema”.
Até este mês, a pior enchente vivida por Porto Alegre havia sido registrada em 1941.
Na enchente de 1941, a pior vivida por Porto Alegre até esse maio de 2024, com a marca de 4,76 metros, demorou 32 dias para as águas voltarem ao leito do Guaíba, cuja cota de alerta é 2,5m e de inundação, 3m. É com base na análise dessa época que os especialistas estimam o tempo de normalização do Guaíba. Porém, o provável é que mesmo com as ruas secas, a cidade que foi coberta por água - com milhares de moradores tendo que abandonar residências, enfrentando falta de água, luz e alguns suprimentos - não será mais a mesma.
Porto Alegre enfrenta colapso sem precedentes
Moradores descrevem o atual momento como “modo de sobrevivência”. Destacam que de longe não dá para se ter noção do que está acontecendo. É difícil encontrar água, gasolina, carne. É um cenário descrito por muitos como “desesperador”.
Em Porto Alegre, está difícil encontrar água, gasolina, carne.
A cidade entrou em racionamento de água na segunda-feira (6), quando apenas uma das 23 estações de tratamento de água estava funcionando, a do bairro Belém Novo, na zona sul. Com as demais paradas, cerca de 85% de Porto Alegre teve o abastecimento afetado.
As torneiras ficaram secas, e faltou água também nos supermercados. Teve gente que apelou para as bicas e fontes públicas, que são impróprias para consumo, mas podem ajudar na hora da limpeza e para descarga de vasos sanitários. Segundo a Diretoria de Vigilância em Saúde, as águas desses locais são monitoradas e apresentam bactérias escherichia coli, que podem provocar doenças infecciosas.
O desabastecimento de água, em muitos locais, ocorreu em decorrência da falta de energia elétrica. Na noite de segunda-feira, cerca de 168 clientes ficaram sem luz, segundo a concessionária CEEE Equatorial. A maioria, 163,5 mil, por causa de desligamentos solicitados pela Defesa Civil e pelo Corpo de Bombeiros, para a segurança da população.
Foi em um esses desligamentos que os bairros Menino Deus e Cidade Baixa foram alagados, e moradores tiveram que sair às pressas das casas. Fazia sol em Porto Alegre e era início da tarde, mas a energia elétrica foi desligada na Estação de Bombeamento de Água Pluvial (Ebap) 16, na altura da Rótula das Cuias, a pedido da CEEE Equatorial. Com isso, a água armazenada ali começou a extravasar e invadir ruas.
O prefeito Sebastião Melo (MDB) ordenou a evacuação dos locais uma hora depois de a casa de bombas ter sido desligada, de acordo com moradores. As pessoas chegaram em suas casas com a água já alta, para pegar pertences e sair. Faltou serviço de aplicativo de transporte na região, e o trânsito ficou parado.
Principais ruas do Menino Deus, como a Múcio Teixeira e as avenidas Borges de Medeiros e Praia de Belas, inundaram. Já as ruas tradicionalmente boêmias da Cidade Baixa desapareceram. A água chegou na cintura em algumas localidades, e um caminhão do Exército auxiliou na manhã desta terça moradores que não conseguiram sair a tempo. Nas águas do Menino Deus, uma equipe da prefeitura de Porto Alegre encontrou um jacaré de pequeno porte.
“O sistema no final das contas não protegeu (a cidade da enchente), mas retardou a subida da água. Se não, essas regiões estariam alagadas desde sábado”, diz Dornelles. Analisando a situação da capital gaúcha, ele compara a cidade a um barco furado. “Os furos são os buracos entrando pelas comportas e casas de bombas. Tampas de inspeção (conhecidas como tampas de bueiro) começaram a colocar água pra dentro (da cidade). Estamos embaixo de uma laje mal impermeabilizada. E o barco é Porto Alegre”, resume. Para ele, faltou prevenção e manutenção para minimizar a enchente na capital gaúcha.
Além da falta de água e luz, os moradores sofreram com a instabilidade do serviço de telefonia. O problema foi registrado em todas as operadoras. Com isso, Vivo, Claro e Tim fizeram um acordo para que os celulares possam se conectar em qualquer operadora que tenha sinal disponível na região.
Ainda no domingo (5), o prefeito de Porto Alegre falou do risco de colapso da cidade com a enchente. “Não quero fazer alarmismo, mas estamos com problema de água, e isto é um fator decisivo. Porque, se falta luz e falta água, a cidade vai colapsar totalmente. Então, vou fazer um apelo. Quem tem casa na praia, e tem condições de sair de Porto Alegre, eu recomendo que saia e vá para a praia. Vou decretar a não-aula por três dias na rede pública e privada de Porto Alegre, na segunda, terça e quarta. Se os colégios quiserem deixar aberto, tudo bem, para quem precisar, mas eu vou decretar isso."
Depois, as aulas da rede municipal foram suspensas até a próxima sexta-feira (10). Ao longo da terça-feira, quatro estações de tratamento de água voltaram à operação, com capacidade reduzida.
“Jamais imaginei que o Guaíba ia chegar até ali”
Porto Alegre é uma cidade acostumada com a chuva forte que alaga algumas ruas por no máximo um dia ou dois. “Dessa vez, a gente achou que ia ser assim. Jamais imaginei que o Guaíba ia chegar até ali”, conta Luiz Felipe de Oliveira, morador do bairro Menino Deus. Ele ficou ilhado com a família por três dias até ser resgatado em um caminhão do Exército.
“Chovia e eu pensava: depois vai parar de chover e a água vai descer. Mas parou de chover e não desceu. Tu dormia e acordava com mais água”, diz ele. A água foi invadindo as ruas e a entrada do prédio. Eles ficaram sem luz e, com isso, sem comunicação. Não tinham notícias do mundo externo. As únicas pessoas com quem conseguiam falar eram as vizinhas. Quando elas decidiram sair, foram juntos. Até então, não sabiam se era melhor descer na água e se arriscar a cair num buraco, se expor a alguma doença, como leptospirose e hepatite A, ou aguardar a água baixar. “Mas a gente não tinha certeza se a água ia baixar”. Nisso, passou um caminhão do Exército. Deixaram o prédio, com a água no meio da perna. A filhinha de colo foi levada por um dos militares e não teve contato com a água. “Tiveram um cuidado excepcional com a gente”, relata.
Foram para a casa dos pais dele que fica na região. Depois pegaram o carro para ir até a casa da sogra de Oliveira. O trajeto, de geralmente uma hora, durou seis horas. “Mesmo no trânsito caótico, eu estava tranquilo por não estar mais no alagamento.”
“Cenário de guerra, confusão, sirene”
Além dos resgates de órgãos oficiais, as ruas de Porto Alegre ficaram lotadas de pessoas comuns que pegaram barcos, caminhonetes e jet ski, para resgatar ilhados. Os amigos Mateus Santana Merlo, Paulo César da Silva Monteiro, Rodrigo Fraga, Felipe Fraga e Lucas Pereira dos Santos estão desde sábado (4) nas ruas auxiliando quem mais precisa.
Começaram levando cobertores, roupas e cestas básicas em um dia que terminou no bairro Humaitá, onde foram salvar um casal de idosos e encontraram a região completamente alagada. “As pessoas chegavam nas embarcações civis, desabafavam com a gente, choravam. Tinha comerciante, família, criança, cachorro. Colocamos elas na picape e levamos até a Sogipa, um dos centros de acolhimento”, conta Merlo.
No domingo (5), agregaram ainda mais gente: Adão Monteiro, Gustavo de Almeida Konrad, Gregui Arregino Medeiros, João Francisco Gomes Pinto e Pedro Aguiar se juntaram ao grupo inicial e foram para Canoas. A cidade da Região Metropolitana sofria com as cheias de rios. Ajudaram a colocar botes e jet ski nas áreas alagadas do bairro Fátima e, depois, foram ao Corpo de Bombeiros, onde ouviram uma palestra sobre os cuidados que devem ser tomados ao realizar os resgates, sobre proceder na água, que não podia passar da cintura.
Dali, foram para o bairro Mathias Velho, um dos mais atingidos pela enchente. “Era uma multidão. Tinha muita gente vindo em canoas, jet ski, barco”. Auxiliaram uma ONG de animais e ajudaram no resgate de cachorros, gatos, cavalo. Como um deles foi mordido por um cachorro, precisaram voltar para Porto Alegre, em busca de atendimento médico. Instituições de saúde de Canoas estavam alagadas ou lotadas. O grupo chegou a ir depois para o bairro Humaitá, na capital, mas chegando lá receberam mensagem que alertava para assaltos na região.
Na segunda-feira, foram fazer os resgates nos bairros Cidade Baixa e Menino Deus, que inundaram com o desligamento da casa de bombas. O grupo cresceu: Eduardo Silva Fernandes, Henrique Martins Dusso e Alice Borges Mota se uniram a eles. Ao chegarem na João Alfredo, uma das principais ruas da Cidade Baixa, se depararam com os alagamentos. Ajudaram alguns comércios a recolher móveis, freezers, levaram o moradores que estavam deixando suas casas até uma área seca. “Fomos fazendo assim: está precisando de ajuda? Temos a picape, coloca as coisas aqui em cima e vamos”, lembra Merlo. Levaram uma mulher, três filhos e animais de estimação para Viamão, onde os deixaram em segurança.
Na parte mais baixa do bairro, em direção ao Guaíba, os resgates já eram feitos de canoa. “O telefone não parava de tocar”, conta. Eram diversos os pedidos de ajuda. Parte do grupo retirava as pessoas dos apartamentos e outra acolhia e tentava acalmar os moradores. Dali, levavam-os de van para os centros de acolhimento. Ficaram auxiliando até as 21h, quando um menino apareceu sangrando, pedindo ajuda. Tinha sido assaltado. Ajudaram ele e foram descansar.
Na terça, seguiram pela Cidade Baixa. Com muitas ruas inundadas, juntaram-se a pessoas com barcos para auxiliar nos resgates. “As pessoas desciam dos barcos chorando. Muitos idosos não queriam deixar a casa por medo de roubos. Era um cenário de guerra, confusão, carro de polícia, sirene”, conta Merlo.
Eles não sabem quantas pessoas ajudaram, mas com certeza fizeram a diferença nessa semana de colapso da capital gaúcha. “Conseguimos retirar muitas pessoas de casa. É um sentimento gratificante de ter ajudado, não tem nada que pague. Ao mesmo tempo, a situação é muito triste”, finaliza.
Como funciona o sistema de prevenção de cheias em Porto Alegre
Porto Alegre se protege de enchentes com um sistema de diques. Depois da grande cheia de 1941, com 4,75 metros, a capital gaúcha voltou a presenciar uma enchente em 1967, que atingiu a marca de 3,13 metros. No ano seguinte, foi definido o projeto de todo o sistema de proteção, que foi construído na década de 1970. “Naquela época, era ditadura militar, as coisas eram impostas, não teve debate, se escolheu em Brasília qual era a solução, vieram e colocaram o Muro da Mauá, que era para funcionar até a cota de até 6 metros”, conta o professor.
Esse paredão, de concreto armado, tem 2,6 quilômetros de extensão e altura total de seis metros: três metros abaixo do solo e outros três acima dele. O aparato protege a área central da cidade e onde ficam os prédios da prefeitura, Correios, Museu de Arte do Rio Grande do Sul, entre outros. Além do Muro da Mauá, o sistema de proteção contra cheias conta com 68 quilômetros de diques, 14 comportas e 19 casas de bombas.
“A gente viu que o próprio sistema começou a colocar água para dentro. A comporta 14, junto com a ponte do vão móvel, já tinha problema e, com a pressão da água, que é absurda, deformou a comporta e abriu brecha. Começou a entrar muita água na cidade e inundou a Avenida Castelo Branco, não por inundação, mas por rompimento do dique, por isso também o aeroporto inundou rapidamente”, diz Dornelles sobre a atual cheia.
Já as casas de bombas, que somam 86 bombas capazes de movimentar 170 mil litros por segundo, possibilitam que a água da vinda de redes de esgotos e canais seja drenada para o rio. “Todo este complexo evita o retorno das águas para as redes e, consequentemente, o transbordamento de canais, bocas-de-lobo e poços-de-visita, espalhados pelas vias e passeios da cidade”, explica a prefeitura.
“Essas comportas e casas de bombas são coisas móveis que fecham e abrem, ligam e desligam. Tem que ter manutenção para não estragar. E a gente observou que não teve (manutenção). Se era um sistema que tinha que proteger até cota 6 metros, com menos de 5 metros já tinha água”, adverte.
Justiça do Trabalho desafia STF e manda aplicativos contratarem trabalhadores
Correios adotam “medidas urgentes” para evitar “insolvência” após prejuízo recorde
PIB cresceu 0,9% no terceiro trimestre, diz IBGE
Milei divulga ranking que mostra peso argentino como “melhor moeda do mundo” e real como a pior
Triângulo Mineiro investe na prospecção de talentos para impulsionar polo de inovação
Investimentos no Vale do Lítio estimulam economia da região mais pobre de Minas Gerais
Conheça o município paranaense que impulsiona a produção de mel no Brasil
Decisões de Toffoli sobre Odebrecht duram meses sem previsão de julgamento no STF
Deixe sua opinião