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Vinicius intensificou suas viagens para a Argentina a partir de 1969 | Divulgação
Vinicius intensificou suas viagens para a Argentina a partir de 1969| Foto: Divulgação

RIO DE JANEIRO - "Sentia-me em dívida com Vinicius por ter-me dado instantes de indestrutível felicidade quando escutava o LP La Fusa no meu toca-discos de plástico alaranjado. Esse toca-discos estava em meu quarto e lá fora a beleza e o amor haviam desaparecido. Era o final de uma década que começou muito bem, mas terminou muito mal: os anos setenta."

Nascida em 1969, a jornalista argentina Liana Wenner não tinha idade para frequentar as rodas boêmias que cercavam o Poetinha em suas andanças pelo Uruguai e Argentina, mas fez um bom trabalho de pesquisa no recém-lançado Nuestro Vinicius/Vinicius de Moraes en el Río de la Plata (da Editora Sudamericana). Em agosto de 1968, Vinicius chegou de navio ao porto de Buenos Aires para um show com Dorival Caymmi, o Quarteto em Cy e Baden Powell no Gran Teatro Ópera, parte de uma investida promocional do café brasileiro. Ele desistira de voar em 1945: viajava do Rio a Buenos Aires quando o hidroavião francês fez um pouso forçado numa laguna uruguaia; a hélice invadiu a cabine como uma serra voadora e matou um passageiro a poucos metros de Vinicius.

Chegava sempre de navio, com a mala cheia de uisque, chocolates e cigarros para os amigos. Em dezembro de 1968, Vinicius estava em Lisboa numa turnê quando recebeu a notícia de sua aposentadoria compulsória como diplomata.

Em entrevista póstuma à revista Veja (12/1/2000), o ex-presidente João Figueiredo dá a sua versão: "...muita gente do Itamaraty foi cassada ou por corrupção ou por pederastia. Mas, no caso dele, foi por vagabundagem mesmo. Eu era o chefe da Agência Central do Serviço e recebíamos constantemente informes de que ele, servindo no consulado brasileiro de Montevidéu, ganhando US$ 6 mil por mês, não aparecia por lá havia três meses. Consultamos o Ministério das Relações Exteriores, que nos confirmou a acusação. Checamos e verificamos que ele não saía dos botequins do Rio de Janeiro, tocando violão, se apresentando por aí, com copo de uísque do lado. Nem pestanejamos. Mandamos brasa."

Vinicius intensifica suas viagens para a Argentina a partir de 1969. Seu casamento com Cristina Gurjão — sexta de suas nove mulheres oficiais — já está chegando ao fim. Em represália a uma infidelidade de Vinicius, Cristina, grávida de Maria, quinta e última dos filhos do poeta, ataca o Poetinha com dois candelabros de estanho. O objeto dessa cena de ciúmes foi a baiana Gesse Gessy, filha de santo que se torna a sétima mulher de Vinicius.

Gesse faz a cabeça do marido, leva-o a um terreiro de candomblé na Bahia onde Mãe Menininha do Gantois o libera do medo de voar, em troca de certas obrigações: só veste roupas brancas, cobre-se de colares de contas e de conchas e cumpre uma série de rituais toda vez que pretende subir num avião.

Liana Wenner tem uma visão crítica da influência de Gesse sobre Vinicius: "Ficaram para trás as roupas pretas que Buenos Aires conhecia. Por Gesse foi astutamente levado a um coquetel vulgar, confuso e superficial de hippismo, candomblé, amor livre e quantos ‘ismos’ dernier cri se cruzassem".

Os hermanos não engoliram Gesse. O produtor de discos de Vinicius falou de "a cagada que fez ao casar-se com a baiana," afastando dele amigos até como Tom Jobim. Outro empresário cultural alfinetou: "Trazia do Brasil ovos de codorna em escabeche, aqui raríssimos naquela época, porque dizia que eram bons para a virilidade — ela era assim..." Em todas suas separações, Vinicius só fazia questão de levar uma coisa: seu retrato pintado por Portinari quando tinha 30 anos. O poeta só conseguiu arrancar o quadro de Gesse tempos depois, a duras penas.

O grande sucesso de Vinicius na Argentina foi o LP Vinicius de Moraes en "la Fusa" con Maria Creuza y Toquinho, de 1970. Passado depois para o formato de CD, conhece boas vendas até hoje. Seus shows naquela boate de Buenos Aires e em sua matriz de Punta del Este fizeram dele um verdadeiro ídolo na Argentina.

Foi depois de um desses espetáculos que uma jovem fã foi procurá-lo para mostrar-lhe alguns poemas que tinha escrito. Era inevitável: a oitava e penúltima mulher de Vinicius seria uma argentina, Marta Rodriguez Santamaría. Ele tinha 61 anos, ela 23 – era 12 anos mais moça do que Susana, a primeira filha do poeta. No Rio, Martita foi apresentada aos cinco filhos do poeta – jovens como ela, excetuando Maria, com cinco anos. Acompanha Vinicius no circuito universitário pelo interior de São Paulo e depois na turnê por Portugal, França e Itália. Apaixonado, o Poetinha complementa sua educação, apresenta-a aos grandes escritores, artistas e músicos, vivos e mortos. Dedica a ela um poema bem humorado: "A mulher de gêmeos/Não sabe o que diz/Mas tirante isso/ Faz o homem feliz." Casam-se em 1976, mas será "uma relação feita de despedidas e reencontros", segundo Liana Wenner.

O desaparecimento em Buenos Aires do pianista da banda de Vinicius, Tenório Júnior, no auge da repressão militar, afasta Vinicius da Argentina. Ao final da década, o casamento com Marta já cumpriu o seu ciclo.

Nuestro Vinicius destaca uma das características do poeta, seu amor à banheira, onde costumava passar horas. Nas palavras da amiga Renata Shussheim: "Fazendo banhos de imersão, colocava uma prancheta entre as bordas da banheira que usava como mesinha e ali escrevia. Passava horas assim, eu o apelidei de Moby Dick".

A atriz Alexia Deschamps, ainda criança, foi com a mãe visitar Vinicius e o encontrou na banheira. Até hoje diz em tom de brincadeira: "O primeiro homem nu que vi na vida foi Vinicius." E foi na água (ele a comparava a "uma volta ao útero materno") que o Poetinha viveu seus últimos momentos, igual a outros homens ilustres que morreram na banheira: o revolucionário Marat, o escritor Ernst Weiss, o roqueiro Jim Morrison (todos os três, coincidentemente, em Paris). Vinicius morreu no Rio de Janeiro em 9 de julho de 1980 — e a Argentina inteira chorou por ele.

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