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Em 1980, José Saramago, então com 58 anos, publicou um pequeno livro, um drama, na verdade, chamado Que Farei Eu Com Este Livro? Era o 13.º livro do autor que já se fazia conhecido à época, mas ainda não tinha escrito alguns dos que seriam considerados seus grandes títulos: Memorial do Convento, Jangada de Pedra; Ensaio sobre a Cegueira. Bom, há vários "grandes títulos", esses são alguns, escolha os seus.

Nesse draminha de 1980, a história se passa no século 16 e ninguém menos que Luís de Camões é o personagem principal. Camões, vindo de guerras na Índia portuguesa, carrega um longo poema embaixo do braço enquanto roga à corte de Lisboa que o publique. É portanto a história de um homem já alquebrado e do esforço que ele fez para publicar sua obra, Os Lusíadas.

É curioso que essa homenagem de Saramago à literatura de sua língua (não podemos esquecer que ele também deu voz a um dos heterônimos de Pessoa em O Ano da Morte de Ricardo Reis) se tenha feito em um drama, onde o narrador tradicional dos romances não existe e temos apenas as indicações de fala e algumas rubricas. E isso é curioso porque talvez a grande não-novidade genial de Saramago tenha sido o tipo de narrador que ele inventou para a maioria de seus romances. Em primeira ou terceira pessoa, o narrador conduz a leitura; não há dúvidas de que ele nos leva, mas nos leva tão confortavelmente que a gente não reclama e se deixa convencer. Mesmo olhos mais treinados pelas provocações modernas, pelas supostas e acadêmicas "morte do autor", "morte do narrador", "morte do leitor" e toda essa carnificina que a teoria contemporânea realizou, mesmo esses olhos prontos para a vanguarda aceitaram a narrativa e os personagens de Saramago porque, simplesmente, eles eram consistentes e, como evitar, calavam fundo na alma lusitana que o nosso português muito brasileiro ainda guarda.

Ao abdicar portanto, de "narrar" Camões, talvez Saramago tenha apenas, nesse livro, prestado uma pequena reverência. Ao inventar os narradores outros e as histórias que criou, ele ainda fez o seguinte: conseguiu ser chamado de escritor anacrônico por conta de uma aproximação radical com a narrativa mais tradicional, quase século 19; conseguiu ser chamado de pós-moderno, graças às aproximações entre literatura e história, à presença de algum realismo mágico e ao uso político de certas alegorias. Mas, independente disso tudo, conseguiu ser lido, muito lido, e levou um pouco mais longe a notícia de que em português também se escreve boa literatura.

*Sandra M. Stroparo é professora do curso de Letras na Universidade Federal do Paraná.

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