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O novo “Caça-Fantasmas”: US$ 150 milhões em piadas, já relativamente velhas, sobre a misoginia nerd | /Divulgação
O novo “Caça-Fantasmas”: US$ 150 milhões em piadas, já relativamente velhas, sobre a misoginia nerd| Foto: /Divulgação

Não sei quando foi que se tornou uma verdade universalmente reconhecida em Hollywood que o sentido da palavra “igualdade” para mulheres, negros e qualquer outra parcela da população excluída dos grandes papéis (e dos grandes salários) passou a ser fazer a exata mesma coisa que fazem os homens brancos. Mas Hollywood tem um talento imenso para cooptar quaisquer forças que tentarem ameaçá-la, e por isso cá estamos nós em 2016, com Hillary Clinton como candidata presidencial pelo Partido Democrata e um quarteto de mulheres como as Caça Fantasmas e, de algum modo, espera-se que acreditemos ter chegado à terra prometida.

É profundamente deprimente, é claro, que, num momento em que todas as obras de arte que tiveram um módico de sucesso vêm sendo exploradas por sua propriedade intelectual reutilizável, os filmes originais dos caça-fantasmas de repente e sem qualquer explicação foram elevados a nível de textos sagrados e inalteráveis. E fica pior ainda quando tem gente que se sente ameaçada de verdade ao ter que assistir mulheres fictícias, em vez de homens, enfrentando fantasmas na tela, considerando que, mesmo nessa profissão igualmente fictícia, os homens no mundo real têm se saído muito bem já como os astros de reality shows como “Os Caçadores de Fantasmas” e “Haunted Highway”.

Porém, por mais desanimador que seja o fato de que há pessoas que se sentem tão ofendidas assim por causa de mudanças irrelevantes numa franquia irrelevante e pela escolha de elenco de quatro papéis, dentre os milhares escolhidos todos os anos, que acabaram indo para um quarteto de mulheres muito talentosas, eu fico ainda mais desanimada com a ideia de que todo esse barulho em torno de “Caça-Fantasmas” tenha levado feministas a defenderem esse remake dirigido por Paul Feig, um filme que tem momentos engraçados, mas que, em sua maior parte, desperdiça um bom elenco e o que poderia ter sido um conjunto de conceitos muito mais bem elaborado.

Falta de credibilidade

As protagonistas são Erin Gilbert (Kristen Wiig), uma professora de física tentando uma vaga na Columbia University, que se vê preocupada porque tem medo que um livro sobre paranormalidade que ela escreveu com sua velha amiga Abby Yates (Melissa McCarthy), que leciona numa faculdade particular sem prestígio, possa vir a constrangê-la diante do comitê de professores que irão avaliá-la. “Caça-Fantasmas” poderia ter explorado melhor a tensão entre Erin e Abby, e trabalhado com a questão de o que as faculdades e universidades valorizam hoje, ao sugerir que Erin abandonou os laços emocionais de Abby com a pesquisa que elas fizeram juntas, para tentar ganhar a aprovação dos administradores da universidades, todos homens, e subir na carreira acadêmica. Em vez disso, porém, a impressão que fica é que as duas só perderam contato mesmo.

Outra grande ideia de “Caça-Fantasmas” que, de maneira semelhante, o filme simplesmente não teve coragem de levar até sua conclusão lógica, surge quando vemos Erin e Abby se reunirem, junto com a brilhante, mas destrambelhada, Jillian Holtzmann (Kate McKinnon) e a funcionária da empresa de transporte público Patty Tolan (Leslie Jones, a quem a internet deve um pedido coletivo de desculpas por ter criticado seu trabalho como sendo estereotipado).

Quanto maior o destaque e o orçamento de um filme sobre mulheres, maiores as expectativas de seu sucesso nas bilheterias, e menos esse filme tem o direito de ser especificamente sobre mulheres (ou negros, ou gays, etc).

Não importa o quanto Erin, Abby e Jillian chamem atenção para suas credenciais científicas, não importa o que elas flagrem em vídeo e não importa nem mesmo quando elas conseguem capturar um fantasma no palco diante de toda uma plateia de um show de rock, ninguém acredita nelas quando dizem que há fantasmas tocando o terror em Nova York. Esse tema escandaloso da falta de credibilidade dada às mulheres é um fio que amarra boa parte do que é importante no feminismo contemporâneo, desde debates sobre violência e assédio sexual até o abuso cometido por trabalhadores da saúde contra as mulheres, bem como a marginalização nociva, em particular, sofrida pelas mulheres negras.

E sabe o quê? É claro que “Caça-Fantasmas” não vai ter coragem de amarrar direito esse fio. É mais uma prova de que, quanto maior o destaque e o orçamento de um filme sobre mulheres, maiores as expectativas de seu sucesso nas bilheterias, e menos esse filme tem o direito de ser especificamente sobre mulheres (ou negros, ou gays, etc).

Misoginia nerd

A colaboração anterior de Feig e McCarthy, “A Espiã Que Sabia de Menos”, uma paródia do gênero dos filmes de espionagem, tinha um orçamento de US$65 milhões e muito mais espaço para falar francamente de temas como assédio sexual, a subestimação persistente das mulheres e do seu trabalho e a crueldade estúpida que é ignorar o que uma mulher tem a dizer só porque um homem em especial não quer fazer sexo com ela. Já “Caça-Fantasmas” foi feito com algo em torno de US$150 milhões, e isso sem incluir os gastos com publicidade. Dá para comprar uma versão feminina do Geleia com esse valor, mas o custo é que você perde a habilidade de poder dizer qualquer coisa que seja mais arriscada, mais pesada e mais verdadeira.

O que dá para comprar com US$150 milhões são algumas piadas, já relativamente velhas, sobre a misoginia nerd. Nossa, as pessoas comentam coisas de mau gosto sobre as novas caça-fantasmas no YouTube e fazem piadas no Reddit! O vilão do filme (Neil Casey) acaba sendo um homem branquelo, fracassado e mal amado, que trabalha num hotel, assedia garçonetes e termina roubando o corpo de Chris Hemsworth! E como é que as nossas supostas ícones feministas acabam com ele? Elas dão a entender que provavelmente ele é virgem e, sem brincadeira, vencem-no com um tiro na genitália. A ideia mais fantástica que o filme tem é a de que existe algum tipo de vitória substancial no gesto de elas terem mandando um único idiota vingativo para o inferno ou coisa assim. “Buffy, a Caça-Vampiros” nunca tentaria empurrar uma bobagem dessas, e até a turma do Scooby Doo sabe que há sempre outros monstros lá fora.

Produto estéril

O problema não é só que a visão de poder feminino de “Caça-Fantasmas” não me parece particularmente empoderada. O que me deixa irritada de verdade é que, depois de meia década de discussões vigorosas sobre feminismo e cultura de massa, chegamos a um ponto em que as linhas de batalha foram definidas de maneira tão imbecil e traçadas de tal forma que sequer vale a pena cantar qualquer vitória que seja possível nessas condições. Os indivíduos que se sentem inexplicavelmente ofendidos pela ideia de mulheres enfrentarem fantasmas podem odiar o filme. Mas eles foram bem sucedidos em criar um clima em que o que não passa de um produto estéril de reciclagem corporativa acaba sendo proposto como uma obra ousada, cujo sucesso ou decepção nas bilheterias pode ter consequências significativas para outros projetos futuros que poderão ser mais inovadores, mais explicitamente feministas e certamente mais divertidos.

O filme não passa de um produto estéril de reciclagem corporativa acaba sendo proposto como uma obra ousada

Na primeira cena de “Caça-Fantasmas”, um guia (interpretado por Zach Woods, outra figura comum dos elencos de Paul Feig) numa visita a uma casa histórica, conta a um grupo de turistas sobre como eram os antigos moradores da casa, e fala de uma mulher tão desagradável que seu pai, antes de prendê-la no porão, escreve em seu diário que “Deus não comete erros, mas ele deveria estar bêbado quando montou a personalidade de Gertrude”. É óbvio que Gertrude (Bess Rous) é o primeiro fantasma que encontramos, um tipo de mulher capaz de espirrar ectoplasma em cima de toda uma equipe de cientistas pesquisadores de atividades paranormais sem desamarrar o espartilho em seu vestidinho listrado vermelho e preto de época.

Eu não consegui não ficar esperando que Gertrude voltasse e injetasse um pouco de energia e atitude em “Caça-Fantasmas”. No fim do filme, vemos as mulheres provarem que também são capazes de enfrentar espíritos nas ruas de Nova York. Mas há muitas outras ameaças que precisam desesperadamente ser caçadas e contidas. E eu ainda não sei quem a gente vai chamar para lidar com elas.

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