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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

Semana passada foi aniversário de Emily Dickinson: 185 anos do nascimento daquela que, quando eu estou hiperbólico (por que não hoje, então?) eu chamo de maior poeta de todos os tempos. Veja bem, não “poetisa”. Poeta.

Talvez o meu verso preferido dela seja o que basicamente define a tarefa da poesia, ou de certa poesia ao menos, dizendo “Tell all the truth but tell it slant”.

Em português?

Coisa tipo “Diga a verdade mas diga de canto”. De revesgueio. Sendo que, claro, o fofo do verso dela é que ela não apenas aconselha a dizer enviesado, mas faz isso no próprio texto quando usa aquele slant, que na melhor das hipóteses é adjetivo, com sentido de advérbio. Mais ou menos como falar “Diga a verdade mas diga torto”… (só que aí a métrica se embanana…)

E nem é só da poesia, né? Pode ser um dos maiores “usos” de toda a boa literatura. Albert Camus já teria dito que a ficção é uma mentira que a gente usa pra dizer a verdade.

Tem certas coisas, afinal, talvez as mais importantes, que a gente SÓ consegue dizer assim. Torto, de canto. Por espelhos e em enigmas, como queria Paulo de Tarso.

Nem sempre dá pra encarar a verdade face a face.

E nem sempre é o mais produtivo.

Uma das maneiras mais interessantes de gerar essas mentiras que dizem torto alguma verdade, no campo da narrativa, é a ficção científica. Bem usada, claro.

Tudo bem que tem o Flash Gordon e tal. Mas quando um escritor de talento, inteligente, decide usar a fábula do futuro pra abordar assuntos, problemas e questões do nosso tempo, coisas poderosas acontecem.

Pense em “2001”, de Clarke/Kubrick.

Pense na “Guerra dos Mundos”, de Wells.

É como nos bons casos de literatura de terror, de fantasia… quando a máscara da mais descarada irrealidade nos permite falar direto (torto?) sobre quase qualquer coisa. Só que, claro, no caso da ficção científica resta a sombra de que essa fantasia pode estar logo ali na esquina.

Pense no “Planeta dos Macacos”…

Recentemente eu li, por exemplo, um romance lindo, profundo, tocante como poucos, que trata de um missionário cristão enviado para evangelizar os nativos de um planeta recém-descoberto. Se chama “The Book of Strange New Things”, de Michel Faber, e está neste momento sendo traduzido pela grande Simone Campos.

Vai por mim, é incrível. (Aliás, tenta não ler nada sobre o autor na Wikipédia. Depois de ler o livro, quando descobrir em que circunstâncias ele foi escrito, você vai chorar mais uma vez.)

Outra coisa de altíssimo nível, que agora está disponível na Netflix é a série britânica “Black Mirror”, do roteirista Charlie Booker.

Os episódios variam de qualidade, mas são todos acima da média mesmo da televisão mais sofisticada, e em duas ou três ocasiões são sublimes. São aquela coisa cada vez mais rara: um produto de entretenimento que põe a tua cachola pra meditar em alta velocidade.

Já dei palestra usando exemplo (arte moderna) do primeiro episódio da temporada 1.

Todos eles se passam num futuro “logo-ali”, o que exacerba aquele efeito incômodo da alegoria. E quase todos lidam com novidades ou repercussões tecnológicas.

O primeiro episódio da segunda temporada (quanto menos eu te falar, melhor) se baseia em coisas que JÁ estão acontecendo. E é uma coisa estritamente doente!

Tenta dar uma olhada. Duvido que você esqueça fácil desses episódios.

A verdade, quando insinuada pelo espelho negro dos enigmas tortos da fantasia, às vezes te acerta com uma bigorna bem no meio da testa…

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