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Ensaio

Confissões de um Jovem Romancista

Umberto Eco. Tradução de Marcelo Pen. Cosac Naify, 192 págs., R$ 48.

Pensemos em um poeta hipotético que, apesar do talento sofrível, tenha livros publicados e chame a si mesmo de "poeta". Vou chamá-lo, para simplificar as coisas, de Poeta Comum. Todos fomos, algum dia, ainda que só nas paixões de juventude, poetas comuns. Eu também fui. A pergunta que aqui interessa é: será este Poeta Comum um escritor "mais criativo", por exemplo, que o filósofo Friedrich Nietzsche? Só porque ele escreve em versos, seus textos serão mais "poéticos" do que a prosa filosófica, mas ardente, de Assim Falou Zaratustra?

Será Água Viva, livro que Clarice Lispector lançou em 1973, um texto "menos poético" que a vasta obra em versos de nosso hipotético Poeta Comum? A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, ou o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, só porque foram escritos em prosa, carregarão uma potência poética menor que a obra – se é que o nome justo é este – daqueles que apenas rabiscam seus versos?

Contudo, não só editores e livreiros, mas também os críticos literários e até escritores, insistem em distinguir, cada vez com mais ênfase, a "escrita criativa" da "escrita não criativa". A um biógrafo, um crítico literário, um ensaísta se pede, muitas vezes, que seja criativo, mas sem perder a prudência. Como se a criatividade, assim como o uso de uma linguagem não convencional, e até de uma linguagem emotiva, pudessem desmerecer, e mesmo esmaecer a força dos argumentos. Trata-se de uma ressalva injusta, que atinge, sobretudo, aqueles que escrevem sem se preocupar em erguer barreiras em torno das palavras. Escritores que não estão nem aí para o fato de, mesmo sendo críticos e professores de prestígio (Silviano Santiago), se dedicarem também à poesia e à ficção; ou para o fato de, mesmo sendo compositores e letristas consagrados (Chico Buarque), ainda assim abraçarem, com força e empenho, a ficção também.

Caso típico do escritor italiano Umberto Eco, que inspira essas minhas rápidas reflexões com suas Confissões de um Jovem Romancista (Cosac Naify, tradução de Marcelo Pen). Eco já começa seu ensaio rindo de si mesmo. Escreveu-o aos 77 anos – nascido em 5 de janeiro de 1932, ele está hoje com 79. Jovem romancista? Argumenta a seu favor que publicou seu primeiro romance, O Nome da Rosa, no ano de 1980, já à beira dos 50 anos. "O que significa que iniciei minha carreira de romancista há apenas 28 anos", faz as contas. Hoje, 30. Como só tem cinco romances publicados, conclui o escritor italiano, "considero-me um romancista muito jovem, que publicará muitos outros romances nos próximos 50 anos". Ri não apenas de si, mas da partilha dos escritores em gerações e em gêneros literários. Diverte-se com a impotência das classificações.

As ideias de Eco apontam para a relatividade que rege a literatura e para o grande engano, para não dizer lorota, que é acomodá-la em gavetas – como se os escritos literários fossem camisetas, ou pijamas. "Nunca entendi por que Homero é visto como um escritor criativo e Platão, não", exemplifica Eco. "Por que um mau poeta é um escritor criativo, enquanto um bom ensaísta científico não seria?" Lembra que, em francês, se distingue um "écrivain" (um romancista, um poeta) de um "écrivant" (o policial que publica relatórios, ou o economista que redige balancetes). Diante dessa compulsão em classificar, e algo atordoado, ele se pergunta: "Mas que tipo de escritor seria um filósofo?"

Pensando ao contrário: seriam as informações que Darwin nos legou a respeito das baleias mais fidedignas que o longo relato de Herman Melville a seu respeito guardado em Moby Dick? Pergunta-se Eco: "Será que podemos afirmar sem sombra de dúvida que ao contar a história de uma baleia inexistente Melville não tinha a intenção de dizer algo verdadeiro sobre a vida e a morte, ou sobre o orgulho e a obstinação humanos?" Algo, portanto, sobre as baleias verdadeiras? Umberto Eco reconhece que, até o ano de 1978, se sentia totalmente realizado como filósofo. Sim, como bom pai, improvisou contos de fadas para os filhos pequenos, mas nunca achou que eles passassem de uma brincadeira. Até que, ao defender sua tese de doutorado sobre Tomás de Aquino, ouviu de um dos membros da banca a dura ressalva de que narrava sua pesquisa "como se ela fosse um romance policial". Foi nesse momento, e invertendo positivamente a restrição que lhe foi feita, que Eco começou a escrever O Nome da Rosa. Foi ali, na identificação de um suposto defeito que ele transformou em qualidade, que Eco se tornou romancista.

Os críticos literários imediatamente estranharam. Como poderia um filósofo meter-se na ficção? Alguns apontaram no romance "dificuldades conceituais e linguísticas", inevitáveis vícios acadêmicos que espantariam o leitor comum. Mas, quando o livro se tornou um best seller, outros críticos afirmaram, com menosprezo e esquecendo os argumentos anteriores, que Eco se limitara a "seguir mecanicamente uma receita secreta". Por fim, alguns deles garantiram que o romance não passava do resultado "de um programa de computador pessoal", quando, observa Eco, os softwares de edição só surgiram no início dos anos 1980. Em resumo: aos estudiosos parecia inaceitável que um filósofo – um severo professor da academia – pudesse escrever um romance divertido. Inaceitável e, sobretudo, impossível.

Um manto de ilusões envolve o mundo literário. Lembra Eco do caso exemplar do poeta francês Lamartine que, dramático, afirmava que um de seus mais famosos poemas lhe surgira "numa súbita iluminação, em certa noite quando vagava pela floresta". Após sua morte, "encontraram em seu gabinete um número impressionante de versões do poema, que o autor havia escrito e reescrito no decorrer de dez anos". A potência poética tem origens inesperadas e surge onde menos se supõe. Escrever em versos não é garantia alguma da presença da poesia. Este talvez seja o ponto mais importante das confissões de Umberto Eco: mostrar que, em literatura, as fórmulas não funcionam e os escaninhos e etiquetas só produzem ilusões. Tudo o que temos, sempre, é o texto, em sua insuperável solidão.

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