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Entre as ocupações de criança, uma das mais ingênuas e que dão à infância um sabor insuperável, é preencher um álbum de figurinhas.

O primeiro destes álbuns – que não era sobre futebol – recebi de presente do tio Otávio, uma das lendas que eu cultivava, pois ele fora, segundo me contavam, um grande jogador de futebol. Grande para todos que o conheceram em campo, na década de 1930, jogando pelo time do Íris, de Florianópolis, que foi vice-campeão estadual por três vezes, de 1934 a 1936. Nada que se compare com a fábrica de celebridades que o futebol virou mais tarde, é claro.

Quando me dei conta de que estava ao lado de um grande jogador, ele já era um senhor roliço, barrigudo, lerdo, usando um daqueles bigodinhos que os catarinas costumam cultivar. O que o ligava ao futebol não era mais a bola, o campo, a torcida. Era o rádio. Flamenguista doente, ficava ao lado do rádio cofiando os bigodes com fúria, espantando a gurizada que fazia barulho em volta e dando murros no aparelho – ora porque não funcionava direito, enchendo a casa com guinchos e zumbidos, ora porque o Fluminense fazia um gol, o que era uma catástrofe inominável.

Durante o jogo, tio Otávio não dizia uma palavra; limitava-se a rosnar alguns palavrões moderados. Casmurro, quase sinistro, ficava ao lado daquele imenso aparelho cujo olho verde nos seguia pela casa. Se o Flamengo ganhava, tio Otávio saía daquele catatonismo tenso, dava risadas, distribuía doces aos meninos, achando tudo divertido, até nossas gritarias. No caso de uma derrota, era bom que fôssemos cantar em outra freguesia, o que significava pegar a bola de meia e disputar uma pelada a duas quadras de distância, no mínimo. Ele se tornava intratável. O primeiro moleque que o irritasse recebia um cascudo vigoroso ou era dependurado pela orelha, enquanto ele mordia os próprios lábios, contendo a ira sagrada de flamenguista.

Visto assim de longe e considerados os cascudos que levei, eu teria motivos para jamais torcer pelo Flamengo, mas deu-se o contrário. Acabei, como todos os meus primos – exceto um, Cláudio, um ovelha negra que se bandeou para o Vasco – virando flamenguista.

Pois foi este tio que me deu o primeiro álbum de figurinhas, que se chamava Atlas. Fiz o álbum, mas relaxei e não consegui completá-lo. Mas ele, obsessivo também nisso, fez dois álbuns e, quando os completou, deu um deles para mim, impecável, sem as orelhas de burro e sem as manchas de dedos sujos que emporcalhavam o meu. E o mais interessante é que, concluído o álbum, era possível trocá-lo por um álbum com capa dura, com as figurinhas impressas. Ele se deu ao trabalho de trocar o álbum para mim.

O que vale a pena contar é que, num dia de raro bom humor, ele se misturou aos meninos que jogavam na rua e tomou conta da bola. Até hoje fico lembrando daquele homem pequeno, gorducho, cabelos grisalhos, fazendo da bola o que bem entendia. Ela se ajeitava ao seu sapato de verniz, girava no ar com efeitos surpreendentes, voltava a sua cabeça, desmanchando os cabelos grisalhos ajeitados com glostora – uma goma com a qual na época todos os adultos empastelavam os cabelos. Depois, domesticada, a bola descia pela perna da calça, equilibrando-se no vinco impecável, e, dócil, retornava ao verniz do sapato. Ele a colocava onde queria. Na cabeça de meu primo César – também um craque, que na década de 1960 foi centroavante do Figueirense – ou pelo meio das pernas do goleiro, ou no meu peito de menino assustado, que suava frio para não parecer um perna de pau, o que de fato eu era.

Pois tio Otávio, conhecido como Pavão, apesar do mau humor e do aspecto sinistro que assumia às vezes, ficou para mim como o modelo de craque de uma época antiga, da qual só ouvi falar. Uma dessas figurinhas fascinantes que fui colecionando vida afora, ao lado de Zizinho, Nilton Santos, Garrincha, Coutinho, Pelé, Teixeirinha – um endiabrado jogador catarinense –, criaturas de um tempo bom e ingênuo, em que os homens eram capazes de grandes feitos e existiam para serem lembrados por suas façanhas.

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