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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Assim como a crônica é o gênero brasileiro por excelência, a poesia é o prato à moda da casa em Portugal. Não se trata apenas de uma extensa produção lírica. Escrever poesia é um exercício de identidade, o que permitiu que um país pequeno erguesse verdadeiras metrópoles líricas que levam os nomes de Camões e Fernando Pessoa. Há um contínuo de ótimos poetas desde a idade média até os dias atuais.

Na contemporaneidade, a linha predominante é o surrealismo, matriz que agrega autores diferentes. Nenhum deles mais importante do que Herberto Helder (Lisboa, 1930 – Cascais, 2015), um autoexilado em si mesmo, em um estilo que não se entrega facilmente ao leitor.

Postumamente saíram seus últimos versos, um volume curto, em que a imagem do poeta gauche é reforçada: Poemas canhotos (Porto, 2015). Seus livros não se alteram de um título para outro, formando um rio-corrente, um grande discurso fragmentado, desconcertante e em grande medida enigmático. Estas peças derradeiras continuam a cifrar o descompasso entre os dois planos, o da idealidade e o da condição humana, como se lê no primeiro dístico da coletânea:

“a amada nas altas montanhas

o amador ao rés das águas.” (p.7)

A expressão “rés do chão” é bastante corriqueira aqui por designar o apartamento térreo nos prédios. O poeta muda “chão” por “água”, o elemento sólido e estável pelo líquido e traiçoeiro, numa alusão ao estado de falência e fragilidade do ser humano, que será continuamente arrastado para o fundo, vendo cada vez mais inalcançável o objeto de seu fascínio (o feminino como símbolo de tudo aquilo que nos move). A linguagem não é uma forma de conquistar o que está além, mas a expressão de nossa falência, de nossa inviabilidade, de nossa habitação na morte, ocupando uma situação de contrariedade em relação ao mundo fútil e tributável:

“sais

ao encontro de outras palavras poucas

...

como quem diz: a multidão de palavras

todas elas esquerdas como se escreve” (p.15)

É esta postura canhota que move o poeta que não pactuou com as ilusões dos modelos tradicionais de poesia ou de nomeada, preferindo sabotar os projetos de realização pessoal. Herberto busca um verbo às avessas, gatilho de estranhamentos que denunciam a monstruosidade da existência. Em versos longos, graficamente dissonantes na página e contrários às construções de sentidos, ele atira palavras contra os vendilhões do templo.

O centro de Poemas canhotos é justamente um texto sobre um poeta/escritor que imita Rimbaud e vive faminto de fama, surrupiando todas as recompensas – uma figura fácil na literatura contemporânea:

“aprontem aí um Nobel para salvar uma vida / ¿um Nobel está bem mas enquanto espera / porque não arranja vá lá um Cervantes um Camões uma coisa dessas? / porra deem-lhe tudo: um reinado, uma dinastia inteira se é tão sôfrego assim, / melhor à cautela dar-lhe o mundo inteiro / e sem repartir com ninguém” (p.31)

Escrever canhotamente é se opor a esta poética direcionada ao sucesso. Que sua obra não nos deixe descansar em paz na linguagem.

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