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Aos 88 anos, Alicia Alonso é uma estrela. E tem perfeita consciência disso. Marcada para as 13 horas de uma tarde chuvosa em Salvador, na Bahia, a entrevista com a reportagem da Gazeta do Povo atrasa. São necessários mais 30 minutos para que a bailarina cubana, um dos maiores nomes na história da dança clássica mundial, entre em cena. Para uma diva de sua grandeza, falar com a imprensa nunca é algo trivial.

Quando o repórter entra na suíte do hotel Blue Tree, construído no alto de um morro no Rio Vermelho, bairro que foi lar do casal Jorge Amado e Zélia Gattai por décadas, Alicia está sentada, em silêncio. Seu vestido é de um vermelho vivo, encarnado, e bordado com lantejoulas. Brilhantes. O traje tem o mesmo tom do lenço que, charmosamente, lhe cobre a cabeça – a artista tem uma coleção com dezenas deles, e nas mais diversas cores e tecidos.

Alicia está impecavelmente maquiada. Batom carmim sobre os lábios finos, rímel e delineador realçam seus olhos negros e amendoados. Mas ela não enxerga quando o repórter se aproxima e lhe estende a mão. Apenas reage quando a presença do jornalista é anunciada. No apartamento estão sua secretária particular, o maquiador – fiel companheiro que a acompanha em todas as turnês internacionais do Balé Nacional de Cuba – e o segundo marido, Pedro Simon, espécie de escudeiro sempre a postos quando a memória da cubana falha.

Alicia é cega. Nem mesmo vultos ela consegue mais enxergar. Foram décadas de guerra contra uma doença que a acompanha desde os 19 anos, quando sofreu um descolamento da retina. Submeteu-se a uma série de cirurgias, mas as últimas já não conseguiam alcançar a correção completa desejada. Ainda assim, jamais se deixou abater: a confiança em seus parceiros, além de vozes vindas das coxias, permitiram que a carreira nos palcos se estendesse, espantosamente, até os 75 anos de idade.

No momento da entrevista, Alicia parece fitar o infinito enquanto fala. Mas algo em seus olhos, aparentemente vazios, e sobretudo em seu corpo, se incendeia quando é invocado o assunto dança, grande amor de sua vida.

Em turnê pelo Brasil, o Balé Nacional de Cuba, renomada companhia sediada na capital Havana e ainda dirigida por Alicia, chega no próximo sábado (30) a Curitiba, última parada da excursão. Seus 46 integrantes sobem ao palco do Guairão para apresentar Giselle. A coreografia não poderia ser mais emblemática. Criado em 1840 por Jean Coralli e Jules Perrot, o balé encontrou, nos anos 40, sua protagonista definitiva no corpo e na expressividade apaixonada da jovem bailarina nascida sob o ardente sol do Caribe. Alicia, recuperando-se de uma das cirurgias nos seus olhos, havia se mudado para Nova Iorque, contratada pelo American Ballet Theater.

"Foi o papel que me transformou em uma prima ballerina. Para qualquer menina que almeja uma carreira, dançar a protagonista de Giselle é um sonho", diz Alicia. Com essas palavras, seu corpo ganha vida, impõe-se. Reproduz, com os braços e as mãos, movimentos e gestos da personagem, enquanto explica a beleza e o desafio representados pela chance de viver no palco a jovem camponesa que se apaixona por um jovem duque e, depois de ser rechaçada pela família do rapaz, morre de amor.

"Giselle exige que a bailarina, além de ter muita técnica, saiba representar, expressar a dor e o sofrimento da personagem no primeiro ato. Na segunda parte, quando ela ressurge como um fantasma, um espectro, é preciso que o papel seja vivido com leveza. A bailarina deve flutuar sobre o palco. Ela tem de ser capaz de representar uma loucura nesse processo de transformação, que não tem nada a ver com a loucura de hoje em dia: é algo mais interior, medido", afirma.

Tradição

Dona de uma personalidade forte, tão notória quanto suas habilidades de dançarina, Alicia Alonso gosta de interferir nas obras que dirige. Com Giselle, não foi diferente: a preocupação com a clareza da história quando dançada fez com que ela criasse uma pequena modificação na coreografia original, tornada popular com os Balés Russos, dirigido por Sergei Diaghilev (1872-1929). Um pas-de-deux no primeiro ato, que a cubana acredita não ter muito a ver com a história de Giselle, transformou-se em um baile. "Em grandes clássicos do mundo sempre há um baile de amigos. E eu segui a versão tradicional dos grandes coreógrafos antigos", explica.

Apesar de todas as suas limitações físicas, Alicia faz questão de continuar viajando com sua companhia, que conduz com mão-de-ferro, aonde ela for. Afinal, o Balé Nacional de Cuba foi primeiro batizado, em 1948, com o nome de sua criadora, do qual se beneficia até hoje. A estrela é uma grife, um selo de qualidade que atrai o público por onde passa.

Os bailarinos que excursionam pelo Brasil representam apenas parte da companhia. Todos, na maior parte bastante jovens, tiveram sua formação tanto artística quanto acadêmica na escola mantida pelo balé em Havana. A cada ano, a instituição recebe novos alunos, meninos e meninas recrutados ainda na infância por professores de danças em várias localidades da ilha.

Orgulho nacional e um dos melhores do mundo, o corpo de baile surgiu em pleno governo do ditador Fulgêncio Batista, que tentou por várias vezes, contra a vontade de Alicia, usar a companhia como propaganda do Estado. Na Revolução Comunista de 1959, quando Fidel Castro sobe ao poder, o novo líder estende a mão a Alicia, que vê no gesto, acompanhado pelo aportes de recursos financeiros, a possibilidade de consolidar uma grande companhia internacional.

Essa parceria, que neste ano completa 50 anos, talvez explique a reticência de Alicia, que, com a habilidade de grande bailarina que é, desvencilha-se do assunto política ao som de seu primeiro acorde.

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Serviço

Giselle, com o Ballet Nacional de Cuba. Teatro Guaíra (Pça. Santos Andrade, s/n.º), (41) 3304-7900. Dia 30 de maio, às 21 horas. Ingressos a R$ 130 (plateia), R$ 110 (1º balcão) e R$ 70 (2º balcão). Estudantes e idosos pagam meia-entrada. Assinantes da Gazeta do Povo e portadores do Cartão Teatro Guaíra contam com 10% de desconto na compra de um ingresso (válido somente para os titulares e não-cumulativo com outros descontos). Classificação indicativa: livre.

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