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 | Osvalter Urbinati
| Foto: Osvalter Urbinati

Escritor brinca de jornalista e cria ensaios brilhantes

Cristiano Castilho

Numa entrevista em 1997, David Foster Wallace declarou: "Penso em mim como um escritor de ficção, e um escritor de ficção sem lá muita experiência, então se tem alguma gracinha por trás de vários ensaios, essa gracinha é ‘Ai, puxa, olha só para mim, um não jornalista que foi enviado para cobrir essas coisas jornalísticas’".

A gracinha por trás da própria tirada autodepreciativa é que muitos ensaios de Wallace são brilhantes e influentes justamente por causa dessa persona de escritor brincando de jornalista, que se revela por meio de uma grande inventividade narrativa e um assombroso poder de observação. As marcas deixadas por Wallace no exercício do jornalismo literário atual são comparáveis às de Hunter S. Thompson – embora sua escrita, de certa forma, seja mais densa, menos pirotécnica – e podem ser verificadas no estilo de novos ensaístas americanos como John Jeremiah Sullivan.

No conjunto, sua não ficção elabora com humor, sofisticação intelectual e uma atenção descomunal ao detalhe os mesmos temas centrais de sua ficção, entre os quais podemos citar o narcisismo como motor da alienação moderna, o poder destrutivo da ironia alçada à condição de visão do mundo totalizante, o niilismo travestido de liberdade e inconformidade, o preço espiritual dos vícios (em especial o vício em entretenimento) e a questão do que podemos fazer para tentar fugir da prisão de nossas próprias cabeças – caso esta não seja uma batalha perdida.

O livro Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo é simbólico em sua tentativa de recortar a realidade com uma tesoura mágica, surpreendente e reveladora. Falemos, por exemplo, de sua cobertura da Feira Estadual de Illinois.

Estruturado como um diário, com inserções de data e horário, o texto começa com uma descrição do "sentimento" de atravessar de carro a planura ilusória da região rural de Illinois, e em seguida expõe o cômico processo de obtenção das credenciais de imprensa. Wallace retrata a si mesmo como um intruso desorientado e fora de lugar, a quem só resta sublinhar repetidas vezes sua falta de jeito, catalogar com sarcasmo e perplexidade o que transcorre à sua volta e bolar teorias intelectuais para explicar o que se passa. Seu contraponto é Acompanhante Nativa – amiga que se mistura ao clima de celebração da feira agrícola, flertando com caubóis e comendo porcarias sem culpa, ou seja, ressaltando, por contraste, o distanciamento do narrador.

"Nenhum antropólogo digno do nome dispensaria os doutos conselhos de um pitoresco habitante local, portanto trouxe uma Acompanhante Nativa para passar o dia comigo (posso botar gente de graça para dentro da Feira usando minhas Credenciais de Imprensa)", escreve Wallace, malandrão.

"Eu tinha comprado um bloco de notas, mas deixei as janelas do carro abertas noite passada e ele foi destruído pela chuva, e Acompanhante Nativa me deixou esperando enquanto se arrumava para sair e não tive tempo de comprar um bloco novo." Wallace faz das picuinhas e dos pequenos desastres um óleo de engrenagem para seu motor literário.

Mas voltemos à participação de Acompanhante Nativa, personagem que pode ser compreendido como uma espécie de interlocutor silencioso em sua enorme digressão. "Mas então teorizo para Acompanhante Nativa (que trabalhou debulhando milho comigo no ensino médio) que a tese motivadora da Feira envolve uma espécie de intervalo estruturado de comunhão simultânea com os vizinhos e com o espaço – o mero fato da terra há de ser celebrado aqui, seus frutos vistos e rebanhos enfeitados e desfilados, tudo como parte de uma amostra decorativa. Aqui o Especial é a oferta de férias da alienação, uma oportunidade de amar por um instante o que na vida real lá fora não pode permitir que você ame."

Personagens, para David Foster Wallace, podem até mesmo adquirir status de exemplares de nossa estrutura social, já que emulam representantes de classe, símbolos de um pensamento comum e de uma atitude coacertiva. Wallace consegue isso porque escreve narrativas longas sobre temas bem definidos, ainda que utilizando boa dose de sarcasmo, humor e ironia – embora nunca seja leviano. E, claro, também porque leva em consideração um apreço pela noção de sociedade, capaz de encaixotar pessoas em respectivas funções. Não sabemos o nome da Acompanhante Nativa, por mais que imaginemos seu rosto (rude), seus cabelos (loiros, compridos e encaracolados) e suas mãos (gastas devido aos sabugos da vida). Mas sabemos seu papel no recorte que o escritor nos oferece. Exemplo dessa espécie de condensação narrativa está em Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer, do mesmo livro. Em seu texto sobre um cruzeiro (e tudo isso que envolve), segue-se o trecho. "Ela demonstra ser do tipo que gosta de relatar detalhes horrendos para então ficar vaga e blasé quando o ouvinte apavorado tenta obter mais detalhes. O marido usa um boné de pescaria com aba comprida e uma camiseta que diz PAPAIZÃO." A caixa alta é por conta dele.

Wallace, sem querer, brinca de semiótica. Além do texto e da descrição verossímil, nos traduz em símbolos e caracteres não usuais uma imagem representativa de parte da sociedade norte-americana – é fácil imaginar um sujeito obeso numa camiseta tamanho XXL. Wallace critica com as melhores armas.

"Perto da parede dos fundos, um bando de senhoras mais velhas de aparência enérgica e indumentária vagamente náutica ergue cartazes impressos – HLND, CELEB, CUND, CRN. A senhora de Chicago que conheci no avião está mais ou menos me dando instruções enquanto PAPAIZÃO abre caminho para nós três em meio à bagunça."

Outro exemplo, nesse sentido, está na descrição que faz dos "Caras das Toalhas", sujeitos que trocam as toalhas das espreguiçadeiras por outras novas, por mais que não precise. Wallace trata dos exageros, da ostentação, mesmo quando isso nem ainda era sinônimo de cultura pop.

"Ah, os carrinhos de cada convés superior são operados em tempo integral por um esquadrão de Caras das Toalhas, de modo que assim que você se julga bem passado dos dois lados e pronto para se levantar sem dificuldades da espreguiçadeira não precisa pegar a toalha e levá-la com você ou nem mesmo colocá-la no compartimento de Toalhas Usadas do carrinho, porque um Cara das Toalhas se materializa no minuto em que seu rabo deixa a espreguiçadeira, remove a toalha e a coloca no compartimento. (Na verdade os Caras das Toalhas são tão perfeccionistas no que se refere à remoção de toalhas usadas que, mesmo se você apenas se levantar por um segundo para aplicar mais ZnO ou contemplar o oceano, muitas vezes ao se virar de volta a toalha terá desaparecido e a espreguiçadeira retornado ao ângulo de descanso de 45° e será preciso reajustá-la mais uma vez e ir até o carrinho para buscar uma nova toalha felpuda, das quais não se pode negar que exista um suprimento enorme."

...

Estou sentado num escritório, cercado de cabeças e corpos. Minha postura está conscientemente moldada ao formato da cadeira dura. (...) Acredito que a minha aparência seja neutra,quem sabe até agradável, embora tenham me instruído aficar mais paraa neutralidade e não tentar o que para mim pareceria uma expressão agradável ou um sorriso. Eu decidi cruzar aspernas, espero,com cuidado,tornozelo nojoelho, mãos juntas no colo da calça. Estou com os dedos emaranhados numa série especular do quese manifesta,para mim, como a letra X. (...) Há algo vagamente digestivo no odor da sala. O solado dealta aderência do meu tênis Nike de cortesia corre paralelo ao mocassim balouçante do irmão da minha mãe, aqui presente como Diretor, sentado na cadeira que está imediatamente onde, espero, seja a minha direita, também encarando os Gestores.

Trecho do livro Graça Infinita.

De todas as maneiras possíveis de começar a falar a respeito de Graça Infinita, a obra-prima de David Foster Wallace, a melhor de todas talvez seja também a mais subaproveitada: a história.

A mitologia em torno do romance já celebrizou sua extensão de mais de 1,1 mil páginas, a linguagem intimidante e apaixonante em igual medida, as notas de fim numerosas e extensas, o quebra-cabeças cronológico, a complexidade estrutural e a bizarrice de boa parte de suas várias personagens.

Na chegada dessa tradução brasileira, a pergunta que soa mais inocente é, para muitos novos leitores interessados, a mais relevante: sobre o que é o livro? Vamos lá.Situada em um futuro próximo em que Estados Unidos, México e Canadá formaram a ONAN (acrônimo para Organização das Nações da América do Norte) e em que até os anos do calendário já não escapam do patrocínio publicitário, a trama se divide em dois núcleos principais. Um deles é a família Incandenza.

O jovem tenista Hal Incandenza, estudante e atleta superdotado que se deixa tragar aos poucos pela alienação social e pelo uso de drogas, é o mais próximo de uma figura central e autobiográfica do romance. Orin, o irmão mais velho, é um ídolo do futebol americano e um obcecado sedutor de mulheres maduras. Mario, irmão do meio, é difícil de descrever: padece de múltiplas deformidades físicas e algumas mentais, e é também o espírito mais sereno e otimista que habita essas páginas.

Avril, ou "Mães", como os filhos a chamam, é a chefe de família dominadora e promíscua (para usar uma expressão datada que reflete as tintas algo moralizantes com que Avril é retratada) que, após o suicídio do marido, assume o comando da Academia de Tênis Enfield, a mesma em que Hal estuda. Completa esse clã um patriarca alcoólatra, James O. Incandenza, cineasta experimental cuja detalhada filmografia rende uma das notas mais deliciosas do livro – leia e releia com atenção, pois ela também vem cheia de pistas e enigmas relacionados à trama.

É uma família disfuncional ao extremo: complexos freudianos, jogos intelectuais opressores, insinuações de incesto - eu não saberia nem por onde começar. Há também ternura, fraternidade, admiração. Os dramas da família Incandenza alçam voos hiperbólicos, mas jamais desenraizam do solo humano.

Outro núcleo está centrado no grandalhão Don Gately, ex-ladrão e ex-viciado, membro dos Alcoólicos Anônimos e ajudante na Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool (sic). Gately porta a visão do livro sobre as irmandades de recuperação para dependentes (Wallace era fascinado pela eficiência quase mística das platitudes existenciais e dos rituais simplórios no combate aos vícios) e se relaciona com quase todas as subtramas do romance, às vezes de forma obscura. A seu redor gravitam vários internos da Casa Ennet, uma turma de coadjuvantes excêntricos que ajuda a inflar o livro de cenas dementes e hilárias.

Gately se apaixona por Joelle van Dyne, também conhecida como Madame Psicose, ex-namorada de Orin e protagonista de alguns filmes de James Incandenza. Um dos meus exemplos favoritos da genialidade de David Foster Wallace é a maneira como ele consegue manter insolúvel o mistério a respeito de Joelle: seu rosto, sempre escondido por um véu após um acidente com ácido, é descrito ora como horripilante, ora como insuportavelmente belo.

Joelle é a protagonista de um filme inacabado de James Incandenza, o famigerado Graça Infinita. Seu poder de entretenimento o transforma em uma arma cultural de massa: espectadores ficam vidrados na tela até a morte. O cartucho com o filme cai em mãos dos Cadeirantes Assassinos do Quebéc, terroristas separatistas que pretendem disseminá-lo para varrer os americanos do mapa.

Eis um resumo possível dos principais elementos da história. O romance é muito mais que isso, mas as temáticas que o movem já se deixam entrever: vício, entretenimento, a solidão e o narcisismo da vida pós-moderna.

O ponto de vista de Wallace era o da cultura norte-americana, e isso precisa ser levado em conta para compreender e apreciar as idiossincrasias da obra, mas a pergunta básica ressoa forte em qualquer sociedade ocidental e, cada vez mais, no planeta globalizado: por que tanto entretenimento?

A suspeita de Wallace, como ele próprio disse em uma entrevista, é que se trata de um "impulso religioso distorcido". A devoção moderna ao entretenimento, somada ao individualismo e à predominância de uma visão de mundo irônica que fatalmente recai em cinismo, explicaria o vazio espiritual que assola do mais destituído ao mais privilegiado.

A honestidade, um dos bálsamos possíveis, já não pode medir forças com a ironia nas relações humanas.

Não por acaso, o único personagem do livro que não consegue evitar ser honesto sempre, Mario Incandenza, é uma deformidade ambulante.

Outras leituras de Graça Infinita não apenas são possíveis como podem conviver saudavelmente com a do parágrafo anterior.

A prolixidade, vocabulário enciclopédico e estrutura propositalmente desnorteante não pretendem esgotar temas, mas criar um ambiente ficcional em que eles se convertam em um poderoso sentimento de fundo, algo que o leitor carregue para sempre consigo.

Nisso, o romance triunfa. Por mais que sua extensão e nível de exigência sejam desafios, ele nos recompensa de novo e de novo por nossos esforços, de maneira intensa e regular, e se torna um mundo que habitamos para sempre.

A tradução

Graça infinita

Caetano Waldrigues Galindo, tradutor e professor da Universidade Federal do Paraná

Graça Infinita tem mais de 610 mil palavras na tradução feita por Caetano Waldrigues Galindo. Se você consegue ler em média 200 palavras por minuto, demoraria 50 horas para atravessar o livro inteiro.

Galindo leu o livro de David Foster Wallace duas vezes de cabo a rabo antes de fazer a tradução (quando o leu pela terceira vez).

Entre a primeira e a terceira vez, leu tudo que Wallace escreveu. Tudo. E mais o que escreveram sobre ele (incluindo a biografia de D. T. Max, que tem um título lindo: Every Love Story Is a Ghost Story, "toda história de amor é uma história de fantasmas").

Na entrevista a seguir, concedida ao jornalista Irinêo Baptista Netto, o tradutor de Graça Infinita – premiado pelo trabalho de colocar em português a obra-prima de James Joyce, Ulysses – fala sobre o que ele aprendeu lendo Wallace.

David Carr, do New York Times, disse em entrevista que o único escritor vivo ou morto que gostaria de encontrar é David Foster Wallace. E Carr disse também que adora Graça Infinita e que leu o livro todo pulando as notas de rodapé. O que o leitor perde se evitar as notas de rodapé – como o livro ficaria sem elas? E por que Wallace gostava de usá-las como recurso literário?

Perde-se muita coisa. Algumas notas são meros detalhes. Notas mesmo, esclarecimentos, mas há trechos inteiros em nota. Reza a lenda que muita coisa foi cortada da versão final do livro, na comparação com o manuscrito. E que as últimas que quis salvar, ele acabou passando para notas em fonte menor etc. A filmografia do Incandenza, por exemplo, que é uma nota enorme e aparentemente tediosa, é importantíssima para o livro. E tem histórias, "causos", coisas divertidíssimas nas notas. Sobre o porquê: fora essa coisa pragmática, acho mesmo que ele simplesmente (como todas as grandes ideias) quis usar um recurso do meio livro que a literatura não estava empregando... e usou magistralmente.

Críticos respeitados falaram que o livro teria se beneficiado imensamente de um editor mais criterioso, capaz de reduzir as mais de mil páginas para umas 600. O que acha disso?

Acho bobagem. O livro podia ser maior. Ele não tem uma estrutura que pudesse se beneficiar de cortes. Ele é como uma colônia, um recife de coral. Ele cresce para todos os lados, sem direção, mas gerando um todo organizado de uma maneira estranha. Um fractal, um triângulo de Sierpinski, como ele mesmo disse. E, o.k., crescimento de um fractal, afinal, é ordenado mas não é teleológico, não tem fim à vista. E faz parte do tema do livro, a ideia de uma coisa grande, absorvente. O livro precisa ser grande.

Você foi do Ulysses, de James Joyce, para o Graça Infinita. E esse trânsito não foi por acaso. Poderia falar um pouco sobre isso?

Wallace, num certo sentido, foi a minha salvação do joyceanismo estreito e radical. Foi a prova de que se fazia e se faz ficção interessante, nova, fresca, poderosa mesmo. E pontos comuns, eles têm, mas muito menos na forma, na estrutura, do que no conteúdo humano dos livros. Do amor que os dois tinham pelo tema, pelas pessoas. Joyce, acho, era um "sim" muito mais radical. Wallace era mais angustiado. Mas os dois eram pautados pela atenção, pela compaixão, pela compreensão.

O escritor Daniel Galera, no prefácio de Ficando Longe do Fato de Estar Meio Que Longe de Tudo, diz que o Wallace dos textos de não ficção é "mais fácil" que o Wallace dos textos ficcionais. Você concorda com essa afirmação?

Concordo, sim. E nem é uma questão formal. A questão é que ele era um cara inquieto. Incomodado. Ele queria entender a gente, ele mesmo, o mundo. E quando ele fazia isso em não ficção, ora, ele te guiava pelo argumento, contra-argumentava, expunha, raciocinava. Quando ele faz isso em ficção (e eu acho que a prosa literária e a prosa ensaística dele são versões de um mesmo projeto de entender o mundo), ele faz na linguagem da alegoria, da ilustração. Por espelhos e em enigmas, como diria o Paulo de Tarso. E esse caminho, por mais que possa ser (e seja, na minha modesta opinião) mais poderoso e mais fértil, gera mais dificuldade, conta com mais trabalho do leitor.

O que você entendeu/descobriu/aprendeu lendo David Foster Wallace?

Sobre mim. Sobre os outros. Sobre o mundo. Sobre o potencial da literatura como campo de reflexão. Sobre compaixão, fundamentalmente. Sobre vícios, sobre empatia, sobre a dificuldade de ser, e de tentar ser, e de ser tentando ser espontaneamente, de fazer força para ser natural, de fazer força para ser sincero, e ter consciência desse processo: de saber que se sabe que se tenta não tentar saber... Esse tipo de coisa.

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