• Carregando...
Daniel Alves, do Barcelona, reagiu a agressão racista, pegando, descascando e comendo uma banana lançada por torcedor | Reprodução
Daniel Alves, do Barcelona, reagiu a agressão racista, pegando, descascando e comendo uma banana lançada por torcedor| Foto: Reprodução

Mundial

Marcelo foi a primeira vítima da Copa 2014

Já no primeiro jogo da Copa do Mundo, entre Brasil e Croácia, o racismo mostrou sua face mais horrível. Após o lateral esquerdo Marcelo, do Real Madrid, ter marcado gol contra, aos 11 minutos do primeiro tempo da partida, vários internautas postaram comentários no Twitter, fazendo referência à cor da pele do jogador carioca. "Primeiro gol da Copa é do Brasil mas o ponto vai para a Croácia tinha que ser preto só faz pretice", escreveu uma certa Débora em sua mensagem, que não foi a única, segundo reportagem publicada pelo site do jornal O Estado de São Paulo. O jornal A Tarde, de Salvador, também reproduziu vários posts no mesmo tom, ligando o erro ao fato de o jogador ser negro.

  • Jogadores de várias seleções participam de campanha da Fifa contra o racismo no futebol

Desde a última quinta-feira, quando foi dado o pontapé inicial da Copa do Mundo, em São Paulo, com a vitória do Brasil sobre a Croácia, todos os jogos do torneio têm sido antecedidos por manifestações oficiais, porém ainda discretas demais, de repúdio ao racismo, uma das bandeiras desfraldadas com mais empenho pela Fifa neste mundial, em uma força-tarefa já iniciada em março do ano passado, mas que, espera-se, agora ganhe mais visibilidade e eficácia. Uma resposta, para muitos um tanto tardia, aos recorrentes casos de discriminação explícita contra jogadores de diversas nacionalidades em estádios de futebol ao redor do mundo.

Entre os episódios recentes, o mais emblemático envolvendo atletas brasileiros foi o protagonizado pelo lateral-direito baiano Daniel Alves, em um confronto, na Espanha, entre sua equipe, o Barcelona, e o Villareal, em 24 de abril deste ano.

Aos 30 minutos do segundo tempo, um torcedor jogou uma banana no campo. Alves pegou a fruta, descascou e comeu. No início daquela mesma noite, o atacante Neymar se manifestou em sua conta no Instagram, postando uma foto do momento em que seu colega de time comia a banana: "Tomaaaaa bando de racistas. #Somostodosmacacos e daí?", escreveu.

A hashtag, em questão de horas, foi viralizada, ganhando as redes sociais. Famosos de várias esferas, incluindo o próprio Neymar, postaram fotos empunhando bananas, em solidariedade a Alves. Não demorou muito para que até mesmo camisetas com a frase fossem postas à venda na internet, transformando a indignação em produto. O protesto, assim como a frase "Somos todos macacos", teria, assim, se banalizado, à medida em que era replicada, dissolvendo-se em boas intenções, que resultam em quase nada.

A edição do Caderno G Ideias desta semana discute qual o significado dessas demonstrações explícitas de racismo em eventos desportivos, questionando a eficácia de iniciativas como a campanha da Fifa, que tenta agora viralizar a hashtag "SayNoToRacism". É consenso entre os entrevistados que iniciativas como essa, apesar de bem-intencionadas, são inócuas, porque não lidam com as raízes do preconceito.

Já na primeira partida do Brasil na Copa 2014, o lateral carioca Marcelo foi vítima de racismo pelas redes sociais após o gol contra que favoreceu o time da Croácia.

Desestabilizar

O médico Nizan Pereira, ex-secretário estadual da Saúde e de Assuntos Estratégicos, falou à reportagem da Gazeta do Povo sobre a experiência de sentir na própria pele o racismo no ambiente esportivo.

Quando era estudante de Medicina, no fim dos anos 1960, Nizan integrou, na posição de pivô, a seleção de basquete da Universidade Federal do Paraná. Ele lembra ter escutado, mais de uma vez enquanto jogava, frases como : "Ô negão, volta para o cabo da enxada". Cita um jogo específico, realizado em 1969, em Ponta Grossa, durante o qual entreouviu o técnico da equipe opositora fazendo comentários racistas, com o claro intuito de que ele ouvisse, e se fragilizasse. "Se ele dissesse aquilo para mim, seria punido, então o fazia de forma indireta, referindo-se a minha pessoa, sem estar me xingando diretamente."

Para Nizan, hoje com 65 anos, o racismo é uma arma usada no esporte para desestabilizar o atleta. O médico, que defendeu tese de doutoramento em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com o título A Construção da Invisibilidade e da Exclusão da População Negra no Sistema Educacional Brasileiro, diz que essas demonstrações de racismo no âmbito desportivo têm ligação direta com nossa herança escravocrata.

O negro no Brasil, por mais de três séculos, até a Abolição da Escravatura, foi visto como mercadoria, desempenhando o papel de força produtiva. Mesmo com a assinatura da Lei Áurea, tem sido negado à população afrodescendente, na prática, o exercício pleno da cidadania em várias circunstâncias. "Há um racismo latente, que nesses ambientes mais restritos, onde há uma atmosfera de competição, vem à tona." Por melhor que seja o atleta, o comentário maldoso, o xingamento, a banana lançada no campo, são atitudes que visam a enfraquecer os atletas, reduzindo-os à condição de inferiores, de animais. Daniel Alves desconstruiu o ato do agressor, tirando-lhe a força de agressão. Mas foi um caso isolado.

Corpo

Maria Antonieta Marti­­nes Antonacci, doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), não vê nenhum desses casos como novidade. Diz que, nos dias atuais, quando muito se discute a globalização e a mundialização, não são apenas mercadorias, objetos e bens culturais que são comercializados e transportados de seus locais de origem, mas também pessoas. E os jogadores de futebol se tornaram um produto de exportação brasileiro.

São muitas as razões que levam os seres humanos a mudar de país, de continente. As razões que provocam essa transumância vão de guerras e epidemias à busca por melhores condições de trabalho, quem sabe de fama e fortuna, como é o caso de muitos desses atletas.

Para Maria Antonieta, pessoas que migram, atletas ou não, trazem em seus corpos diferenças que vão além da cor da pele, do pigmento e dos traços físicos. São diferenças de ordem cultural e se chocam com o mundo dito branco, que se julga superior, escorado por certezas construídas ao longo de mais de cinco séculos de práticas colonialistas e imperialistas, que foram se transformando no decorrer do tempo, mas não cessaram de existir.

Esses paradigmas de superioridade, diz a historiadora, foram sendo construídos lentamente, através dos séculos, criando divisórias, por vezes intransponíveis, entre esse mundo dito letrado, branco e europeu (ou de origem europeia), que enxerga como inferiores quem carrega no corpo, em seus traços físicos, mas também em suas linguagens corporais, práticas religiosas, usos e costumes, diferenças que se chocam com essa hegemonia, que, segundo ela, envolve profundas questões psíquicas e morais, muitas inconscientes. "Por isso, são tão difíceis de serem mudadas."

Ela cita o historiador e militante antilhano Aimé Césaire (1913-2008), autor do livro Discurso sobre o Colonialismo, publicado nos anos 50, ainda sob a ressaca da Segunda Guerra Mundial, para quem dentro de cada burguês europeu, existiria um Hitler. Também evoca o psiquiatra e ensaísta Frantz Fanon (1925-1961), francês da Martinica, de ascendência francesa e africana, que em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, fala sobre a negação do racismo contra o negro na França e da ideologia que diz ignorar a cor, e como ela pode apoiar o racismo que nega – em uma linha de pensamento que causou grande turbulência no mundo acadêmico entre as décadas de 1960 e 1970.

Descolonizar

Segundo o cientista social e militante da causa negra Carlos Moore (leia entrevista na página 3), ações como a da Fifa mascaram uma inação fora do âmbito dos estádios e arenas esportivas. São medidas paliativas que pouco ou nenhum resultado têm no mundo real. "Impor sanções draconianas contra o crime do racismo, fora e dentro dos estádios, é o que há de ser feito", diz.

Maria Antonieta Marti­­­nes Antonacci diz que apenas por meio da educação, sobretudo no nível fundamental, e de um esforço de descolonização que comportamentos racistas, como os que são observados em eventos esportivos ao redor do mundo, que nada mais são do que um reflexo do que se passa fora da esfera esportiva, poderão deixar de ser tão frequentes. "Para que todos possamos nos reconhecer como iguais."

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]