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Biografias musicais na mira

Se Paulo Cesar de Araújo, autor do livro Roberto Carlos em Detalhes (2006, Editora Planeta), sofreu um revés e tanto quando a Justiça determinou, em 2007, a proibição e retirada do mercado de sua obra, o filão de biografias de nomes da música nacional seguiu rendendo novos títulos e a republicação de antigos. Pelo menos até o momento em que a polêmica em torno de projetos não autorizados pega fogo no país, com o surgimento do movimento Procure Saber, por meio do qual medalhões da MPB, como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, se posicionam contrários a qualquer tentativa de produção de obras de cunho biográfico sobre eles sem autorização prévia.

Curiosamente, a maior parte dos livros que ganharam as estantes das livrarias nos últimos anos tem como protagonistas personagens já mortos. A mais bem-sucedida de todos, do ponto de vista comercial, foi Vale Tudo – A Vida e a Fúria de Tim Maia (2007, Editora Objetiva, R$ 60,90), do jornalista, escritor, compositor e produtor musical Nelson Motta. A obra permaneceu por muito tempo nas lista dos livros mais vendidos de não ficção e serviu de base para o espetáculo Vale Tudo – O Musical. Deve, também, ser adaptada para o cinema.

O livro, saboroso em detalhes íntimos da vida de Tim, se beneficia do fato de Motta ter sido amigo próximo e produtor do cantor, morto aos 55 anos, em 15 de março de 1998. Essa proximidade, contudo, não evitou que o jornalista esbarrasse em conflitos entre familiares do cantor. Tanto que o projeto, que havia sido iniciado no começo dos anos 2000, só saiu de papel em 2007 com o auxílio do pesquisador Denilson Monteiro, que ajudou Motta no levantamento de documentação e nas entrevistas com pessoas que conviveram com o artista.

Outra biografia musical importante lançada na última década foi Maysa – Só Numa Multidão de Amores (2007, Editora Globo, R$ 32), sobre a cantora capixaba, que morreu em 22 de janeiro de 1977, em um acidente automobilístico na ponte Rio-Niterói. O livro é assinado pelo jornalista Lira Netto, que acaba de lançar, pela Companhia das Letras, Getúlio – Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo, segundo volume de uma trilogia sobre o ex-presidente brasileiro.

Lançado por ocasião dos 30 anos de morte da intérprete e compositora de "Ouça", Maysa – Só Numa Multidão de Amores é uma obra vocacionada para se tornar livro de referência, fruto de uma pesquisa detalhada de dois anos, que se preocupa em dissecar a complexidade da personalidade de Maysa e fazer um levantamento histórico muito depurado.

Por ironia, o livro foi lançado quase ao mesmo tempo em que outra biografia, Meu Mundo Caiu – A Bossa e a Fossa de Maysa (2007, Novo Século, R$ 29,90), de Eduardo Logullo, que retrata a cantora de forma superficial, quase romantizada, como se fosse heroína de um melodrama caudaloso, com direito a dores, amores e final trágico. É evidente a fragilidade da pesquisa, que conta com poucas fontes primárias (parentes, amigos e colegas de profissão) e se baseia em textos já publicados sobre a artista, deixando evidente que foi feita a toque de caixa.

Várias edições

No ano passado, foi relançada pela editora LeYa Furacão Elis (R$ 39,90), da jornalista Regina Echeverria, por ocasião dos 30 anos de morte da cantora Elis Regina. Em 2007, o mesmo livro, originalmente lançado em 1985, já havia sido republicado em forma de álbum ilustrado pela Ediouro. É única obra do gênero sobre a artista.

Algo relatorial e burocrático, o livro traz muitas informações sobre a carreira de Elis, mas é bastante econômico no que diz respeito à vida pessoal, talvez por ter contado com as bênçãos da família da intérprete. Ainda assim, é um documento importante tanto para fãs quanto para pesquisadores de música popular brasileira.

Paulo Camargo

  • Moreira da Silva: referência no samba até os 98 anos
  • Limonov sonha com a volta da União Soviética
  • Livro sobre Tim Maia reconstitui a vida do polêmico cantor
  • A cantora Maysa ganhou duas biografias
  • Livro - Moreira da Silva – O Último dos Malandros - Alexandre Augusto. Sonora Editora, 308 págs., R$ 39,90. Biografia
  • Livro Limonov - Emmanuel Carrère. Tradução de André Telles. Alfaguara, 342 págs., R$ 45. Não ficção

Está escapando do debate sobre as biografias um aspecto relevante para os leitores: a história de vidas humanas rende grandes livros. Uma olhada nas estantes das livrarias permite encontrar biografias que têm grande valor histórico e literário. Outras tantas se destacam por abrir nossos olhos para períodos da história, recente ou mais antiga, que seria difícil compreender se não fosse através da vida de seus personagens mais significativos. O Ideias de hoje comenta algumas biografias que estão nas livrarias e que apresentam grandes personagens. Ainda que imperfeitas, estas biografias cumprem o papel dos grande livros – ampliam nossos horizontes.

A vida não autorizada de Moreira da Silva

Roberto Muggiati, especial para a Gazeta do Povo

Livro relata os anos conturbados do cantor carioca, conhecido como o inventor do samba de breque

Já o começo foi dose: o indivíduo nasce logo num 1.º de abril! E teima em viver 98 anos bem vividos até o redondíssimo 2000. Sua longevidade ensejou um contato produtivo com o jovem biógrafo. Alexandre Augusto Teixeira Gonçalves – baiano de Feira do Santana – tinha 21 anos em 1992, quando começou suas pesquisas sobre o sambista carioca Antônio Moreira da Silva, então na lucidez suprema dos seus 90 anos. Em 1994, graças a uma providencial bolsa, Alexandre Augusto mudou-se para o Rio e aprofundou seus estudos sobre o inventor do samba de breque. Em dois anos, o jovem baiano só respira Moreira da Silva. Faz dezenas de entrevistas, reconstitui o panorama musical do Rio de Janeiro a partir dos anos 1920, cobrindo as oito décadas de atividade do biografado. Mais do que isso, convive intensamente com ele, enfrentando paradas indigestas no morro, depenados no jogo. "Já estávamos quase tesos, só com o dinheiro do táxi. Foi quando Moreira pegou a soligem (navalha) e, num ato reflexo, fez o sinal da cruz. (...) Hoje relembro aquele dia e penso com meus botões que, se não fosse o ato reflexo do Kid, essas histórias não poderiam ser contadas."

Lançado em 1996, Moreira da Silva – O Último dos Malandros sai agora em versão atualizada pela Sonora Editora – e em plena celeuma das biografias. Discretamente, na página dos créditos, se lê: "O nome, a imagem e os dados biográficos de Moreira da Silva foram licenciados pela herdeira Marli Correa Gomes." Ué, malandro agora autoriza biografia? Nada disso: malandro que se preza só tem tudo a mostrar.

História braba: o pai, trombonista da banda da PM do Rio de Janeiro, morreu de cirrose quando Antônio tinha dois anos. A viúva, Pauladina, ficou ao léu com o menino e sua irmã de quatro anos. Corriam o risco de ficar analfabetos como a mãe, que foi trabalhar fora como doméstica, largando as crianças na casa de vizinhos. Entra em cena o manobreiro de bonde Otávio Ribeiro, "junta os trapinhos" com Pauladina e ensina ele mesmo o bê-á-bá ao moleque: "Em pouco tempo o mulatinho, que de burro não tinha nada, já lia e arriscava os primeiros garranchos." Pauladina tinha um gênio terrível e o bom motorneiro segue o bonde em frente. Antônio perde o segundo pai; envergonhado mente na escola que ele morreu. A mãe volta a batalhar como empregada. "A dieta era a da fome, às vezes Pauladina trazia sobras dos patrões, quando não havia comida o jeito era engolir farinha e beber muita água." O menino deixa a escola e se vira em bicos: fábrica de meias, tecelagem, encarteirador de cigarros. Ansioso por sua estreia sexual, Antônio "achava as empacotadoras de cigarro as criaturas mais bonitas da terra." De volta à escola, onde a mãe era servente, tem finalmente "pegou o coleguinha de jeito e teve seu primeiro orgasmo de verdade. Mas como tudo tem seu preço, acabou pegando uma bruta gonorreia do coleguinha."

Até aqui, uma biografia nada edificante. O sujeito parece que não vai dar em nada – se não cair na pior, no mundo da marginalidade. Aos trancos e barrancos, vai achando sua vocação: a malandragem do morro carioca. Com direito ao indefectível "uniforme": malandro que se prezasse tinha de envergar ternos de linho S-120, camisa de algodão, gravata apertadinha, sapato bicolor e chapéu panamá. O jargão também era peculiar: araquiri, de araque (duvidoso), bobo (relógio, trabalha de graça), crivo (cigarro), gordurame (comida), justa (polícia), maracanã (prato fundo), xavecada (embromação). Abundam as referências a navalha: aço, Leonora, sola, soligem (da marca alemã Solingen), duana (o estojo da sola). E ao homossexualismo: apanhar o sabonete, teste da farinha, teste do balde.

Moreira da Silva, como detalha O Último dos Malandros, passou por muitas na vida – nem sempre boas. Com Jandira, primeira mulher: engravidou a moça, mas ela e o filho morreram logo de tuberculose. Mulherengo, sempre cercado de "minas" igual ao Don Giovanni de Mozart, contabilizou suas conquistas em 1.296 mulheres. Alexandre Augusto mapeia a extensa carreira de Moreira numa discografia completa, dos pontos de macumba Ererê/Rei de Umbanda, num primeiro 78rpm de 1931, até o CD Os Três Malandros in Concert, de 1995, com Dicró e Bezerra da Silva, também chamado "Os Três Terrores in Concert", uma gozação aos três tenores Pavarotti, Domingo, Carreras.

Em 1928, casou com a mulher da sua vida, uma mulata de São Cristóvão, Maria de Lourdes – a Mariazinha. Viveram felizes – na medida em que mulher de malandro é feliz – durante 55 anos, até ela morrer do coração. Moreira era estéril, por causa de uma "mula": "Peguei a doença de uma cearense gostosa, pelo menos era gostosa a desgraçada." Uma vantagem: jamais engravidaria as amantes. Mariazinha e Moreira queriam ter filhos e uma filha [Marli] caiu do céu quando morreu um grande amigo, deixando a viúva grávida de quatro meses, e adotaram a criança.

Numa carreira de altos e baixos – por muitos anos sobreviveu como chofer de ambulância – Moreira da Silva cantou até o fim. Em abril de 2000, com 98 anos, fez um show no Estácio e dizia aos amigos não acreditar que chegasse aos 100, cantando "Oh morte cabeluda, não me iluda!" Morreu de câncer em 6 de junho de 2000 e foi cremado, conforme seu desejo. Malandramente, protestou: "Não vou dar confiança das baratas me tocarem." As cinzas do último malandro foram lançadas nas águas da Baía de Guanabara.

Em "Limonov", o biógrafo também é personagem

Marleth Silva

Ao folhear Limonov e perceber que se trata da biografia não autorizada de um político russo desconhecido no Brasil, me perguntei que leitor se interessaria por aquele livro. Ao ler os primeiros capítulos, reformulei a pergunta: que leitor em busca de bons livros não se interessaria por aquela biografia?

Deve ter sido um raciocínio assim que levou a editora Alfaguara a apostar na publicação da biografia de uma figura que os brasileiros desconhecem. Trata-se de uma ótima leitura, acima de tudo. O personagem é interessante, é claro, e o autor Emmanuel Carrère não fez uma biografia padrão. Talvez contaminado pelo estilo literário do seu biografado, que se desnuda em seus livros, ele se permitiu aparecer em meio à narrativa como mais um personagem. O resultado da exposição é que o biógrafo também pode ser julgado pelo leitor.

O francês Carrère dá um passo à frente no universo dos biógrafos ao dedicar essas páginas à informações sobre si próprio. Faz isso por uma razão. Carrère admira Limonov, talvez até o inveje um pouco. Deixando visível essa total falta de neutralidade em relação ao biografado, ele é mais honesto com o leitor. Esse "descortinamento" do autor, por assim dizer, também dá mais profundidade à biografia, acrescenta à leitura uma segunda dimensão. Temos informação sobre Limonov e também sobre as reações que a vida de Limonov provoca em quem o observa.

Eduard Limonov é um ucraniano atualmente com 70 anos, filho de um agente subalterno da KGB. Fez de tudo na vida. Foi operário na Ucrânia, malandro de rua, passou um período internado em um manicômio, foi poeta em Moscou, mordomo em Nova York, e tornou-se um escritor ousado e cult em Paris. Estava nesta posição quando Mikhail Gorbachev acabou com a União Soviética e, naquele ponto da história, decidiu voltar para casa. Começou então sua vida de político, fundando o Partido Nacional Bolchevique, mas nunca venceu uma eleição.

Ele é autor de livros de memórias. O primeiro a ser publicado foi O Poeta Russo Prefere os Negros (título da edição francesa). Seguiram-se outros tantos, sempre memorialistas, que conquistaram os leitores europeus e os jovens russos. Porém, mais que a história de vida de um intelectual, o livro de Carrère é a biografia de um soviético, esta identidade nacional que não existe mais. Nascido durante a Segunda Guerra Mundial, Limonov enfrentou os problemas de se viver em uma ditadura comunista e ficou perplexo com o mundo que surgiu após o fim da União Soviética. Seu país virou um bang-bang de máfias, um desfile de gosto duvidoso de novos ricos. A democracia não conquistou os ex-soviéticos e eles vivem entre a nostalgia do mundo previsível em que a Rússia reinava poderosa e a excitação doentia do economia de mercado. É essa nostalgia e essa excitação que a biografia retrata ao falar de Limonov.

O biógrafo Carrère não finge ser neutro, não tenta ser invisível. Ele diz o que pensa do seu objeto de estudo, defende-o em algumas ocasiões, revela-se decepcionado em outras. A leitura toma ares de conversa, de diálogo. Limonov contou episódios de sua vida ao biógrafo, que agora conversa sobre Limonov com o leitor. Longe de ser fofoca, é uma aula de história.

Se Limonov gostou da biografia não se sabe, mas não fez nada para impedir sua publicação.

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