• Carregando...

RIO DE JANEIRO - Cenário de gueto clean, luzes estroboscópicas, fumaça de gelo seco, 16 atores negros em figurino fashion e um septeto semierudito num canto do palco — parece que estamos vendo algo como Porgy & Bess no Lincoln Center de Nova York, mas é a nova montagem de Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes (agora simplesmente Orfeu) na concepção de Aderbal Freire-Filho.

Recapitulando: no distante ano de 1942, Vinícius topou com um libreto da ópera de Gluck Orfeu e Eurídice na casa do pintor amigo Carlos Leão, em Niterói (RJ). Mergulhou na leitura enquanto do vizinho Morro do Cavalão vinha com força uma batucada de carnaval.

Nasceu ali a ideia de transpor o mito grego de Orfeu para o cenário carioca. O segundo ato da peça só seria escrito em Los Angeles, seis anos depois. O terceiro ato perdeu-se numa viagem de avião de volta ao Brasil e foi reescrito em 1953, com o apoio do poeta João Cabral de Mello Neto.

A peça foi premiada no concurso do 4.º Centenário do Estado de São Paulo e o texto publicado na Revista Anhembi. No prefácio do livro, Vinícius escreveu: "Esta peça é uma homenagem ao negro brasileiro, a quem, de resto, a devo; e não apenas pela sua contribuição tão orgânica à cultura deste país – melhor, pelo seu apaixonante estilo de viver que me permitiu, sem esforço, num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca."

Publicada a peça, faltava, para a montagem, a outra metade da maçã: a música. Num fim de tarde, na uisqueria Villarino, no Centro do Rio, Vinícius foi apresentado a Antonio Carlos Jobim, maestro desempregado que ganhava a vida tocando piano em boates. Sem fazer muita fé no projeto, Jobim perguntou ao poetinha: "Mas tem um dinheirinho nisso aí?" (Imaginem só o dinheirinho que renderia, ao longo das décadas, a vitoriosa parceria Tom-Vinícius, iniciada naquela mesa de bar...)

A temporada de Orfeu da Conceição, no final de 1956, foi curta. Veio então o premiado filme Or­­feu Negro, coprodução franco brasileira de 1958. O diretor Marcel Camus, em vez de aproveitar as músicas da peça, exigiu novas canções.

Vinícius, diplomata, servia no Uruguai e com dificuldades ele e Tom compuseram "A Felicidade", "O Nosso Amor" e "Frevo de Orfeu". Luiz Bonfá contribuiu com "Manhã de Carnaval" e "Samba de Orfeu" – com letras de Antônio Maria – que logo se tornariam clássicos do jazz.

O Orfeu de 2010 as excluiu do repertório e apostou em ser essencialmente um tributo ao songbook de Tom e Vinícius. Com a anuência dos herdeiros, incluiu, além dos sete temas originais, canções posteriores à montagem de 1956, como "Água de Beber", "Samba do Avião", "Este Seu Olhar", "Chora Coração", "Chovendo na Roseira" e "Chega de Saudade", além das três do filme, destacando-se "A Felicidade" como a melodia maior do musical. Tudo sob a chancela dos diretores musicais Jacques Morelenbaum e Jaime Alem, que dubla ainda o violão de Orfeu.

Segundo Aderbal Freire-Filho, "a inclusão das músicas realimenta a peça, joga novas luzes sobre ela".

Além de competir com a música – o mito de Orfeu, o semideus que a todos encantava com suas melodias, não podia deixar por menos –, a dramaturgia enfrenta os desafios da própria temática escolhida por Vinícius há mais de 50 anos: a ambientação da história no morro carioca. Não à toa, o poetinha aplicou à peça o subtítulo Uma Tragédia Carioca.

Já o cineasta Jean-Luc Godard, como crítico da revista Cahiers du Cinema, achava anacrônica a profissão de Orfeu no filme, motorneiro de bonde, e dizia preferir que ele fosse chofer de lotação, aquele herói anônimo do Rio de final dos anos 1950.

Adequando-se ao momento atual das favelas cariocas – entre a pacificação das UPPs e a guerra do tráfico –, a nova produção de Aderbal Freire-Filho injeta no enredo bandidos, policiais e traficantes, um bonde do funk e a expressão "Perdeu, Orfeu!..."

Este Orfeu do século 21 é interpretado pelo ator Érico Brás, dividido entre o amor de Eurídice (Aline Nepomuceno) e a vingança de Mira (Jéssica Barbosa), todos atores baianos ligados ao Teatro Olodum. Um dos destaques é Isabel Filardis no papel da Dama Negra. O papel de corifeu é exercido pelo Poeta (Wladimir Pinheiro), na verdade a encarnação do próprio poetinha criada por Aderbal Freire-Filho e declamando textos adicionais de Vinicius.

No balanço final, entre a fúria dos deuses clássicos e a violência dos marginais de hoje, fica a nostalgia pungente das músicas de Tom e dos versos de Vinicius: "O morro não tem vez/ Mas olhem bem vocês/ Quando derem vez ao morro/ Toda a cidade vai cantar". E: "A felicidade do pobre parece/A grande ilusão do carnaval/A gente trabalha o ano inteiro/Por um momento de sonho/Pra fazer a fantasia/ De rei ou de pirata ou jardineira/Pra tudo se acabar na quarta-feira./ Tristeza não tem fim,/Felicidade sim..."

Serviço:

Orfeu. Direção de Aderbal Freire-Filho. Depois de passar por Rio e São Paulo, o espetáculo se apresenta em Brasília, Goiania e Porto Alegre.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]