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Relação entre futebol e literatura vira tese de doutorado

A relação entre futebol brasileiro e literatura foi o tema que instigou a tese de doutorado de André Mendes Capraro, professor adjunto dos programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) em História e Educação Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Leia entrevista completa

  • Gigantes do Futebol Brasileiro
  • Água Mãe
  • À Sombra das Chuteira Imortais
  • A Dança dos Deuses
  • Quando É Dia de Futebol
  • O Negro no Futebol Brasileiro
  • Estrela Solitária
  • O Drible
  • O Gol É Necessário
  • Contos de Futebol

O tema costuma ser combustível para "resenhas" entre as almas brasileiras que cultivam, ao mesmo tempo, o gosto pelo futebol e pela literatura: por que, apesar de ser o esporte mais popular do país, o futebol dificilmente é protagonista na literatura nacional?

LIVROS: Veja lista de dez obras nas quais o futebol é personagem

Em especial na ficção, ainda são escassos os romances que colocam o esporte no centro da trama. Contos e poesias sobre o universo boleiro também são bissextos. E entre os que são lançados, raros são aqueles de valor artístico inquestionável.

Isso apesar de não faltarem escritores apaixonados pelo esporte e milhões de torcedores com potencial para se tornarem leitores. E de que, às vésperas da Copa do Mundo de 2014, o mercado editorial ensaie uma aproximação com o esporte – nunca se lançou tanto livro sobre jogadores, clubes e campeonatos.

André Capraro, professor do doutorado em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), observa esse distanciamento entre esporte e literatura pela perspectiva histórica. Ele lembra que a relação entre o futebol e as letras não começou tranquila, já que nas primeiras duas décadas do século 20 a intelectualidade brasileira resistia à elitização e ao "estrangeirismo" que o esporte inglês então representava.

Em palestra na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, no mês passado (evento, aliás, que deu grande destaque à produção literária sobre o esporte), o professor Bernardo Duarte de Hollanda, da Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV), destacou um momento emblemático da diatribe entre o futebol e a inteligência brasileira.

Foi no final da década de 1910, quando o Brasil viveu um grande boom do esporte após a conquista do campeonato sul-americano, em 1919, com uma vitória de 1 a 0 sobre o Uruguai, no Estádio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. O título coincidiu com uma série de greves gerais organizadas pelo movimento operário, de onde sairiam os futuros ídolos esportivos.

"Os intelectuais e simpatizantes dos movimentos anarquistas e comunistas viam o futebol de fábrica como uma estratégia de distração dos trabalhadores pelas classes dirigentes, disseminando um profundo ceticismo pelo esporte, tal como aparece na obra de Lima Barreto no início dos anos 1920", disse Hollanda em sua palestra.

Essa resistência ao esporte não é exclusiva do Brasil. Na Argentina, Jorge Luis Borges mostrou seu desprezo ao futebol atribuindo sua popularidade ao fato de que não "haveria nada mais popular que a estupidez".

No Brasil, escritores como Graciliano Ramos deixaram claro sua antipatia pelo caráter elitista que o esporte teve nos seus primórdios, o que fez com que demorasse décadas para os clubes aceitarem negros como atletas, salvo honrosas exceções. O grande relato sobre essa época é o livro O Negro no Futebol Brasileiro, de Mário Filho, lançado em 1947.

Para o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, este é o grande romance sobre futebol escrito no país, apesar de não ser uma obra de ficção, e chama a atenção para a linguagem de crônica e a enorme galeria de personagens e suas histórias apresentados na obra. Rodrigues lançou no mês passado o romance O Drible (Companhia das Letras). Elogiado pela crítica, o livro tem sido apontado como um golaço da literatura sobre futebol. Segundo o ex-jogador e colunista da Gazeta do Povo Tostão, grande craque dos gramados que manteve o padrão excelente como cronista na imprensa, "faltava à literatura um grande romance como este, que perpassa pela história do futebol. É o livro que eu gostaria de ter escrito".

O livro engrossa a lista de textos de destaque sobre o rude esporte bretão, ao longo da história do país, ainda que esta lista seja menor do que se poderia esperar dada a importância cultural que o universo da bola atingiu por aqui.

Ditadura

Outro momento que marcou o distanciamento entre a intelectualidade e o futebol deu-se após o golpe militar de 1964. "A ditadura usava a Seleção [Brasileira] como ferramenta de propaganda e isso gerou outro afastamento. Escritores como Nelson Rodrigues, que eram apoiadores notórios da Seleção, eram tachados de reacionários", explica Capraro.

Há ainda outros motivos para a literatura boleira sempre parecer em "impedimento" no país. Para o escritor Ruy Castro, autor de Estrela Solitária , biografia de Garrincha, ainda que tenha produzido "gigantescos cronistas, ensaístas e analistas", o futebol no Brasil não produz grandes ficcionistas. "Mas talvez a culpa não seja dos escritores", avalia.

"A culpa é do próprio futebol. Talvez o esporte coletivo não se preste à grande literatura", diz. Ele compara o Brasil a outros países que também têm tradição literária e esportiva para concluir que alhures tampouco se conseguiu produzir ficção de alto nível sobre seus respectivos esportes nacionais (beisebol nos EUA ou ciclismo na França).

O escritor santista José Roberto Torero, autor de mais de dez livros de história e de ficção sobre futebol, entende e concorda com estes dois pontos de vista, o distanciamento histórico e temático, mas aponta um terceiro motivo. "Talvez o futebol não seja mesmo algo fundamental. Amor, poder e morte são assuntos mais importantes. E o futebol, como já disse sei lá quem, ‘é apenas a coisa mais importante entre as coisas sem importância’."

Vivência

Para Torero, poderia ser possível atrair para a literatura fãs de futebol a partir de tramas que retratem o universo boleiro, mas a empreitada, "por experiência própria não é tão fácil".

"Geralmente o torcedor ama a realidade. O futebol de verdade já lhe dá o suficiente. Acho que há várias razões para isso. Em primeiro lugar, uma partida de futebol é uma narrativa em si, com heróis, vilões, personagens secundários, viradas, combates, desfechos etc... Isso dificulta bem a empreitada do escritor porque um livro sobre uma partida ou sobre um campeonato seria uma narrativa sobre uma narrativa, uma história sobre uma história", diz.

Diante da constatação de que a realidade do futebol é tão fantástica que exige muito do ficcionista para superá-la, o autor gaúcho Marcelo Backes, que em seu livro Último Minuto usa o universo do futebol como pano de fundo da trama, afirma que talvez o que falte seja uma maior vivência dos escritores no mundo real do futebol.

Filho de um jogador amador, "o craque da seleção municipal de Campinas das Missões", no interior gaúcho, Backes conta que o futebol que conheceu por dentro se tornou combustível importante na sua ficção.

"O futebol fez parte da minha formação mais íntima, foi o responsável por alguns traumas importantes: por exemplo, nunca fui muito talentoso, mas para refutar com bons argumentos o desdém do meu pai (‘tu não joga nada’) cheguei a me tornar um jogador razoável. Mas sei também que não é necessário ser cozinheiro pra dizer que uma sopa está salgada demais", conta.

Parecidos

Ao final é possível concluir que mesmo separados por alguns graus de distanciamento, o futebol e a literatura se parecem. A começar pela capacidade que ambos têm de transformar homens em mitos. Algumas de suas obra são difundidas espontaneamente pela comunicação popular catalisado-lhes os feitos até o ponto de que as lendas se tornam maiores e mais verdadeiras que a realidade.

Também, tanto em um campo quanto em outro, apesar do número inesgotável de aspirantes, raros são os gênios, ainda que muitos "peladeiros" sejam precipitadamente tomados como tal. E poucas coisas fazem tão bem à alma do povo do que quando, nos dois campos, são marcados os gols de placa.

Biblioteca "boleira" básica

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