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Artista

Ruído doloroso

Na constante alternância de barulheira e calmaria, o disco Nevermind é o reflexo mais bem-acabado da vida atormentada de Kurt Cobain

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Quando Amy Winehouse morreu, há dois meses, a dita maldição dos 27 anos voltou a assombrar. Artistas que partiram dessa para uma melhor quando tinham a temida idade foram relembrados. Caso de Kurt Cobain, o loiro de cabelo desgrenhado que declarou ao mundo sua insatisfação em três discos, e terminou de fato estourando os miolos em 5 de abril de 1994.

A diferença entre Kurt e outros que claudicaram quando a maturidade surgiu está na forma com que lidou com sua paranoia. O líder do Nirvana nunca escondeu seu descrédito na humanidade. No palco, debochava do próprio público, batendo palmas como um descoordenado. Em outro show, já depois de o disco Nevermind ter virado o que virou, mostrou seu pênis às câmeras. Mas, afinal de contas, o que era isso para um garoto que sofreu desde cedo com bullying quando essa palavra ainda nem existia, além de um tratamento à base de remédios fortes contra um suposto déficit de atenção e as mudanças constantes para a casa de parentes após o divórcio dos pais?

Mesmo o que virou clichê nos shows da banda – a quebradeira geral de instrumentos – fazia sentido. Não era embalagem, e sim adendo. Era víscera, conteúdo. Kurt Donald Cobain foi, enfim, o porta-estandarte de um gênero musical que, como ele, teve vida curta. Suas dores e inquietações eram como combustível. Sua ojeriza à fama, contraditoriamente virou sua marca indelével, vendida aos quatro cantos.

Perfeição

A despeito de sua insatisfação com o planeta Terra, Kurt era exigente quando o papo era música. A história do Nevermind, que completa hoje exatos 20 anos desde o seu lançamento, começa, na verdade, com Bleach (1989). O disco desagradou a Kurt e ao baixista Krist Novoselic, que já andavam meio borocoxôs devido à falta de público em seus shows. O culpado, segundo eles, era o então baterista Chad Channing, um dos que tentaram emplacar no Nirvana e não conseguiram. Aí surgiu Dave Grohl, a argamassa de Nevermind.

"Dave Grohl, sem dúvidas, foi o ponto forte para que o álbum tenha saído tão bom. Grohl tinha acabado de chegar na banda e, com todo seu talento, encaixou-se perfeitamente, dando a pegada que o Nirvana precisava", diz Marcos Vinícius de Souza Maia, 28 anos, dono de um site em homenagem ao grupo de Seattle. E, complementa o fã, se Dave era o que faltava, Krist era o companheiro equilibrado. Enquanto isso, Kurt bancava o perfeccionista.

Contrastes

O álbum mais pop do Nirvana é um reflexo de seu criador. Contrastando guitarras distorcidas e silêncio, ironia e sarcasmo, Nevermind não é um tapa, mas um soco de luva.

Lembre, por exemplo, de "Territorial Pissings", a sétima faixa. Na música mais punk de Nevermind, um baixo distorcido, uma guitarra suja e uma bateria cíclica constroem caminho para Kurt se esgoelar ao cantar "preciso achar um caminho, um caminho melhor". Por isso muita gente pensa como Marcos quando se questiona o porquê da adoração por essa obra, mítica desde a capa. "Nevermind tem uma grande carga de emoções e muita fúria. Sempre recorro ao disco nessas horas."

Já em "Something in the Way", que fecha o álbum, surge um Kurt melancólico, quase doce. Para gravar, exigiu que seus sussurros fossem captados. E na música, ainda há um violoncelo levemente desafinado, que cria uma sensação de angústia permanente. Porque nada era perfeito para Kurt, um homem que viveu entre luz e sombras, veias saltadas e sussurros.

"Acho que o álbum é como se fosse um grito do Kurt Cobain, dizendo ‘ei, escute o que tenho a dizer. Estou te ofendendo? Não importa, mas é assim que eu sou’", diz Maia, que ouviu a banda pela primeira vez em um especial da MTV, lá nos anos 1990.

Único

Difícil dizer o que seria o Nirvana hoje, se Kurt não tivesse encerrado abruptamente o seu périplo, Krist deixado a música em segundo plano e Dave Grohl não fosse um moleque travesso de 42 anos, símbolo de uma banda carismática como é o Foo Fighters.

Dizem que de tempos em tempos o mundo da música dá voltas, redescobrindo antigas referências – como o que aconteceu nos anos 2000 com a enxurrada de bandas que reviveram os anos 1980. A velha guarda do grunge, porém, segue sua toada, na pele de Pearl Jam, Alice in Chains e Soundgarden. Mas vá falar para um fã que os ingleses do Yuck, por exemplo, podem ser a salvação do grunge e a resposta será como um mantra: "Outro Nirvana nunca existirá."

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