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Bráulio Mantovani: viagem ao mundo dos pesadelos | Fotos: Divulgação
Bráulio Mantovani: viagem ao mundo dos pesadelos| Foto: Fotos: Divulgação
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Perácio (Relato Psicótico), a estreia literária do roteirista Bráulio Mantovani, é um desafio para a crítica e para os leitores. Na capa, há a informação de que o conteúdo teria sido transcrito (de fitas) e é comentado pelo autor. Na página 3, na ficha catalográfica, o livro é apresentado como uma obra de ficção. Perácio, antes mesmo de o leitor entrar na trama, já se apresenta como um híbrido, que pode ser uma apropriação da realidade, mas que também tem de ser uma experiência imaginária de Mantovani.

O enredo é ousado, difícil de entrar e prevê um leitor que aceite o desafio de seguir por umas 40 páginas sem entender com clareza o que está acontecendo. Mas, superada a turbulência, a narrativa tende a envolver até o fim.

O narrador se apresenta como Bráulio Mantoan (quase o mesmo sobrenome do autor), e conta, no primeiro fragmento, que surtou após escutar o que está gravado em algumas fitas. Esse conteúdo seria o depoimento que revela o que aconteceu com um sujeito chamado Perácio, que se encontra internado em uma clínica. Mantoan conheceu Perácio, mas quem fez o relato foi um outro homem – cujo nome não é revelado – é conhecido como CFD.

O livro, como a sinopse do parágrafo anterior sugere, é construído a partir de uma trama misteriosa. A narração alterna fragmentos, ora os comentários de Mantoan, ora o relato de CFD sobre a trajetória de Perácio.

O que mais chama a atenção é a voz de CFD, a maneira que o narrador encontrou para traduzir o universo de Perácio, para quem, depois de um trauma, não havia mais fronteiras entre o que era realidade e pesadelo. "O Perácio sempre sofreu com os pesadelos. Desde que ele era criança, o Perácio sempre sofreu com os pesadelos que ele tinha. Eu sei porque ele me contou que sofria com os pesadelos e me contou os pesadelos que faziam ele sofrer."

O autor, Bráulio Mantovani, admite que ele mesmo tinha, e ainda tem, pesadelos, e deixa escapar que alguns de seus sonhos podem se confundir com os do personagem.

Fronteiras tênues

Ao seguir, e insistir, pelas páginas deste livro, o leitor poderá se sentir perturbado; uma vez que tudo que diz respeito a Perácio é assustador. Ele teria sido (será?) um agente secreto que foi, em missão, para uma cidade chamada Palankland. Lá, contratava um coveiro para invadir túmulos e, com as madeiras dos caixões, construir palanques. Mas Perácio vacilou e o seu mundo ruiu.

O narrador conta que, assim como ele, algumas pessoas que es­­cutaram as fitas, com os relatos sobre Perácio, também perderam o chão. O leitor tende a se perguntar: será que essas fitas existem? No texto da orelha do livro, o psicanalista Contardo Calligaris diz, em um e-mail, que teria sido enviado ao editor Pascoal Soto, que essas fitas precisam ser destruídas, devido ao estrago que elas teriam provocado em algumas pessoas.

No entanto, como provar, ou não, se as fitas e Perácio existem é uma tarefa no mínimo difícil, o que precisa ser levado em conta é o o resultado do projeto autoral de Bráulio Mantovani.

O fluxo narrativo, com o "de­­poimento" de CFD, consegue enunciar o universo perturbador e irresistível de um sujeito que perdeu o controle a respeito do que é real e o que é delírio ou sonho. Frases longas, com uma pontuação própria, revelam uma proposta literária original, diferente de tudo o que se faz no Brasil, o que faz de Bráulio Mantovani um dos autores mais experimentais da literatura contemporânea. GGGG

Mestre do roteiro

Aos 47 anos, o paulistano Bráulio Mantovani afirma que, pela primeira vez na vida, não precisa mais ligar ao gerente do banco pedindo para cobrir o limite do cheque especial. Ele é roteirista e também um dos investidores de Tropa de Elite 2 que, com 10,736 milhões de espectadores (até o fechamento desta edição), é o filme com maior bilheteria da História do cinema nacional, superando Dona Flor e Seus Dois Maridos, de 1976, até então, com 10,735 milhões de espectadores, o detentor da maior bilheteria.

"Hoje, posso escolher para qual filme vou fazer o roteiro, o que não é comum, uma vez que no Brasil geralmente é o diretor quem escala o roteirista. Mas, pensando bem, desde que comecei foi assim", diz Mantovani. Ele, que concedeu entrevista por telefone à Gazeta do Povo, es­­treou profissionalmente há me­­nos de uma década. O seu primeiro trabalho foi com Cidade de Deus, pelo qual ele foi indicado ao Oscar. Também assina o roteiro de Última Parada: 174, Tropa de Elite 1 e colaborou em Linha de Passe e O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias.

Antes de Cidade de Deus, escrevia roteiro para programas da TV Cultura, do Canal Futura, para o Telecurso 2000 e para vídeos empresariais.

"Sou um recluso. Não costumo sair de casa", diz. Casado com a roteirista Carolina Kotscho (2 Filhos de Francisco), apesar de todos os compromissos profissionais, faz de tudo para ver e brincar com João, seu filho (de um outro relacionamento). "O João mora com a mãe, mas eu dou um jeito de estar com ele", afirma o escritor, que às 7h15 está trabalhando e retrabalhando os roteiros.

Em 2011, Mantovani já tem compromisso: o roteiro para um outro filme, sobre o qual ele ainda não comenta.

Ele vive em São Paulo, onde nasceu, e para onde voltou quando tinha 30 anos, depois de temporadas em Nova York e Madri. Tem parentes no Paraná, em Curitiba e em Arapongas, "que eu não visito faz tempo".

"Meus amigos são, em sua maioria, gente ligada ao cinema", conta, sem citar nomes. Mantovani quer, a partir de agora, publicar outros livros. Perácio estava pronto há mais de uma década e, de acordo com ele, foi publicado no tempo certo.

Durante a conversa, Mantovani confessou que não costuma acertar o palpite sobre a repercussão dos filmes para os quais escreve o roteiro. "Pensei que Cidade de Deus e Tropa de Elite não fariam sucesso. Não consigo prever a recepção de uma obra", finaliza.

Serviço:

Perácio (Relato Psicótico), de Bráulio Mantovani. Leya, 224 págs., R$ 39,90.

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