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Sonhei com cavalos. Grandes, pretos e brancos, que andavam com tediosa regularidade rumo a uma espécie de guindaste. Uma máquina assustadora, de ferro, alçava os bichos pelo pescoço até certa altura. Uns três metros. Os cavalos agonizavam, grunhiam. E logo retornavam ao chão estranhamente compactados, com um rabo muito, muito fino. "Aproveitamos melhor os cavalos assim", me disse alguém sem rosto.

Um grande amigo, tão astuto quanto sensível, interpretou o sonho da seguinte forma: o cavalo é um animal que simboliza a liberdade, o espírito aventureiro – lembram do fantástico mundo de Marlboro? Cavalos também são dóceis. Colocá-los em um curral, submetê-los a uma rotina, e depois compactá-los em alguma outra coisa seria como retirar toda essa liberdade intrínseca e transformá-los em algo que represente o status quo, a rotina, o desencantamento. "Porque se aproveita melhor." Faz todo o sentido, ainda mais nesses estranhos dias.

Há muitos cavalos sendo transformados em alguma outra coisa. Somos muito mais suscetíveis a distrações do que a inquietações. Com o tempo, perdemos a curiosidade. Temos medo de nos interessar por algo que não é do nosso conhecimento. Às vezes falta gente pra "chutar o balde", disse esse mesmo amigo, certeiro.

Conheço alguns que não se deixam esmorecer. Que criam, refletem, pensam, vivem. Mesmo que isso não leve a nada prático, palpável. Mesmo que não dê dinheiro. É o próprio cavalo em ação. Mas é de uma tristeza tamanha perceber como a submissão à rotina míngua o interesse, a vontade de criar. Vivemos em uma época de fluidez. Nós – faço parte da geração que cresceu já com o computador a tiracolo – temos infinitas possibilidades de escolhas, mas pouquíssimas delas são sólidas e duradouras.

Dia desses esbarrei em uma entrevista com o filósofo polonês Zygmunt Bauman, que fala exatamente sobre isso, algo que ele chama de "modernidade líquida." "É mais provável que as pessoas prefiram a opção mais fácil – não necessariamente porque a julguem mais atraente, mas porque seu custo é menor." Não queremos nos colocar em risco, e então nos repetimos. "As pessoas tendem a se orientar por aquilo que os outros ao seu redor fazem; em uma livraria, por exemplo, elas selecionariam um livro que estivesse atualmente na lista dos mais vendidos, e ao considerar ir ao cinema, a maioria optaria por um filme que a maioria já viu e discutiu..." São cavalinhos virando algo compactado – e de rabo muito, muito fino.

E continua, o Bauman. "Devemos esperar que uma minoria rejeite a escolha mais comum; outra pequena minoria se mostrará entusiástica em relação a ela e ansiosa por fazê-la; mas a grande maioria ‘no centro’ se manterá meio indiferente (‘morna’), indecisa quanto a uma ou outra escolha e que, seguindo as linhas da menor resistência, optará por acompanhar a maioria."

Que sejamos cavalos, e não gente morna e compactada. Aliás, vou ali fora tomar um banho de chuva, aprender a pintar um quadro e celebrar a possível cacofonia de cores ou fazer algo que nunca fiz antes. "Por quê?", você diria. Mas a pergunta é: "Por que não?"

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