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Otto Maximiliano Pereira de Cordeiro Ferreira: música como escapismo produtivo | Talita Miranda/Divulgação
Otto Maximiliano Pereira de Cordeiro Ferreira: música como escapismo produtivo| Foto: Talita Miranda/Divulgação

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Otto deu por si na cama transformado num sujeito que não sabia o que fazer para aplacar a dor da desilusão. Resolveu, então, gravar um disco. O quarto, o melhor de sua carreira. Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos é, como muitas obras pretendem ser, uma resposta artística a um sofrimento humano. Mas é tão palpável quanto foi a sensação de Gregor Samsa ao acordar barata. O personagem é protagonista de A Metamorfose, livro de Franz Kafka que inspirou o título do disco do músico recifense, ex-integrante da primeira formação da Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A.

Lançado nos Estados Unidos em setembro de 2009 pelo selo Nublu, o disco que já circula e re­­colhe elogios também pela Eu­­ropa, chegou ao país na metade de dezembro pela Arterial Music. São dez faixas, oito inéditas, que possivelmente retratam o momento posterior ao fim do relacionamento do músico com a atriz Ales­­sandra Negrini.

O casamento de sete anos acabou em 2008. O que sobrou foi algo denso, cheio de lama e caos que, contextualizado com a guitarra de Catatau, a bateria e a percussão de Pupillo e o baixo de Dengue, viram arte das mais puras e viscerais, daquelas das quais não se sai ileso.

A primeira faixa é um soco. "Crua" começa com cordas sinuosas, tensas e agudas, que dão espaço para o músico cantar sua amargura gigantesca. "Há sempre um la­­do que pese/ um outro lado que flutua". E Otto avisa: "na primeira vez, dói". Depois do refrão – que poderia ser chulo, mas é só sincero –, um solo límpido de guitarra surge como alento. E aí a palavra "lembrança", que acompanha a melodia crescente, parece mais tijolos que caem na cabeça. Otto não quer lembrar.

"O Leite" traz ótima parceria com a cantora Céu. "Quando eu perdi você/ ganhei a aposta." Não há saída, esse é o clima de Certa Manhã... A música segue tortuosa, com duetos harmônicos, até se ensolarar em um "laralá" alegre que soa exótico, para então voltar ao lugar de origem. "Num dia assim calado você me mostrou a vida/ e agora vem me dizer que é despedida".

Então Otto reza. "Janaina" é um reggae animado, que fala so­­bre a fé nesses "tempos maus". Em meio a um sax ocasional e a uma percussão afro, Otto busca saí­­da em sua religião.

A maior novidade musical do trabalho é a inserção de aparatos eletrônicos, na faixa "Meu Mun­­do". O cantor e percussionista se sai bem ao utilizar samplers e programações na música que fala – novamente – sobre virar a folha da história: esquecer é a meta.

Na metade do disco, o primor da obra. Em "Seis Minutos" há ecos de um aflito Ronnie Von de tempos idos com a dor canalha de Walter Franco. A música co­­meça com uma guitarra blues, é permeada por uma base consistente de piano, enquanto Otto parte para uma sequência perfeita e pesada, cantando "Não precisa falar/ nem saber de mim /e até pra morrer/ você tem que existir". É, novamente, a tentativa de exorcismo, ao mesmo tempo que sugere dúvidas sentimentais profundas – seria melhor que ela não tivesse existido, então?

A segunda mulher a aparecer no disco é a mexicana Julieta Venegas, em "Lágrimas Negras" e "Saudade". A primeira – composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, sucesso na voz de Gal Costa – fala do pranto imponderável que "sai, cai e dói". A segunda é um samba-cabaré de linda melodia. E Otto segue sua procissão. "Na vida tudo pode acontecer/ partir e nunca mais voltar".

Como se pedisse ajuda a um pai ausente, surge "Naquela Mesa", clássico de Sérgio Bittencourt que arrancou lágrimas na voz de Nel­­son Gonçalves. A música, também presente na trilha do filme Árido Movie, de Lírio Ferreira, ganhou retransformação digna, com solos otimistas de teclado que acompanham a "dor doída" cantada com maestria por um Otto também renovado – sua voz é consistente e ampla e seus improvisos vocálicos bem colocados.

O disco termina com a irônica "Filha", que pretende fazer com que um dia ensolarado aconteça depois desses "sonhos intranquilos". Mas... "Aqui é festa, amor, e a (ou há?) tristeza em minha vida", berra o cantor.

E com "Agora Sim", Otto, como se quisesse terminar logo com tudo, metralha uma sequência de palavras que termina em "ruim". É sua última palavra no disco, talvez seminal em relação a seu sentimento, mas antagônica ao que criou: uma obra-prima sobre o amor (ou a ausência dele?) espetacular e memorável. GGGGG

Serviço

Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos. Otto. Arterial Music/Rob Digital. Preço médio: R$26,30.

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