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Nelson Rodrigues é incomparável na alçada da crônica jornalística: textos traziam confissões espantosas | Arquivo familiar/Divulgação
Nelson Rodrigues é incomparável na alçada da crônica jornalística: textos traziam confissões espantosas| Foto: Arquivo familiar/Divulgação

As 80 crônicas que compõem o livro Memórias: a Menina Sem Estrela são originárias da coluna As Memórias de Nelson Ro­­drigues e foram escritas para o extinto diário carioca Correio da Manhã entre fevereiro e maio de 1967.

O impacto desta nova edição, a terceira, publicada pela Agir, não é o mesmo do volume que saiu em 93 pela Companhia das Letras, não só porque aquela apresentava 41 crônicas inéditas em livro – a primeira edição reunia apenas 39 delas –, mas porque foi na mesma década em que o jornalista Ruy Castro chamou a atenção para a prosa de Nelson Rodrigues (1912-1980) e ela pôde, finalmente, dividir o palco com sua dramaturgia.

Se é verdade que só o tempo define um clássico, quem sabe agora, com a nova edição, seja possível enxergar o óbvio: Memórias: a Menina Sem Estrela é um clássico da literatura brasileira e nada deve aos melhores textos teatrais do autor.

A excelência do livro faz com que haja pouco a dizer sobre as particularidades da edição atual. A proposta da Agir é mais, digamos, espaçosa que a da Companhia das Letras: as dimensões do volume e as fontes são maiores, rendendo 442 páginas (contra 279 da versão anterior).

Um dos pequenos detalhes da nova edição é a data da publicação no jornal ao fim de cada capítulo. A maior novidade talvez seja o pequeno prefácio assinado por Barbara Heliodora e um quadro cronológico (bacana) que serve para situar o leitor em alguns dos episódios relatados no livro. Mas insisto: a importância da reedição é, na verdade, a qualidade do texto de Nelson Rodrigues.

Um leitor atento poderia perguntar: mas, afinal de contas, porque é uma obra clássica da literatura brasileira se dela pouco ouvimos falar? Se poucas universidades a adotam em seus exames vestibulares?

A resposta é: não se sabe. Ninguém sabe. Ou, se alguém sabe, não explica com clareza.

E não se trata apenas de cabotinagem de quem dedicou uma dissertação ao tema – caso deste resenhista –, ou reivindicação alucinada e isolada de um fã da obra.

Sábato Magaldi, da Academia Brasileira de Letras, talvez o crítico mais preparado para falar do teatro de Nelson Rodrigues, e Ruy Castro, provavelmente o maior conhecedor da obra e da biografia do escritor, consideram Memórias: a Menina Sem Estrela o maior feito de Nelson. O mesmo se aplica ao jornalista José Lino Grünewald (1931-2000) e ao escritor Otto Lara Resende (1922-1992). Este foi além e classificou o décimo capítulo, no qual Nelson narra o nascimento da filha cega, Daniela, "a menina sem estrela", como uma das mais belas páginas da língua portuguesa.

Com suas memórias, o autor de Beijo no Asfalto insere na rica tradição da crônica brasileira um tipo de reflexão pouco usual antes dele e muito imitada depois. Ele dota a crônica brasileira de características autobiográficas e ensaísticas para propor reflexões agudas sobre temas essenciais para o ser humano: a amor, a sexualidade, a infância e, principalmente, a morte.

Elaborações inteligentes sobre temas fundamentais, é claro, não eram e nem são inexistentes, mas raras. O colunista da Folha de S.Paulo Contardo Calligaris é um bom exemplo de crítica adulta e inteligente nos tempos atuais.

Ocorre que Nelson Rodrigues é realmente incomparável na alçada da crônica jornalística. No espaço efêmero do jornal, entre anúncios de sabonete e os resultados do futebol, Nelson radicalizava o processo com confissões espantosas, ao mesmo tempo doces e tristes, falsamente superficiais, mas inteligentes e pouco importa se você concorda ou não com ele. São escritos temperados com humor adulto, raro, capaz de rir de si mesmo. Não "stand-up", não cômico, não gracejo juvenil.

Com as Memórias, Nelson encontrou seu modo singular de narrar crônicas. Ao lapidar seu estilo forjado na reportagem policial, no melodrama e no teatro, o escritor desenvolveu também o que é, talvez, a maior das qualidades dos grandes narradores modernos: criar narrativas a partir de experiências pessoais.

Nelson Rodrigues, porém, não trabalha no registro do mais fácil, do palatável, do mediano. Nem ao usar o humor, nem ao narrar a infância. O tempo da infância não é refúgio para as agruras do presente (procedimento não raro na tradição da crônica brasileira). Serve, sim, para ampliar a compreensão do que ocorre no momento. Ele não se esconde. Razão por que quase toda a sua obra e, principalmente, suas Memórias são um convite a pensar com coragem e a reconhecer, ao mesmo tempo, a beleza e a dor da vida. Indispensável.

Serviço

Memórias: a Menina Sem Estrela, de Nelson Rodrigues. Agir, 442 págs., R$ 69,90.

Marcio Robert é psicanalista

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