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Teresa Urban em sua casa no Jardim das Américas: histórias descartadas em reportagens ganharam o fio da ficção | Antonio More/Gazeta do Povo
Teresa Urban em sua casa no Jardim das Américas: histórias descartadas em reportagens ganharam o fio da ficção| Foto: Antonio More/Gazeta do Povo

Lançamento

Dez Fitas e um Tornado

Livro de Teresa Urban. Livraria Arte & Letra (Al. Pres. Taunay, 130 B), (41) 3039-6895. Hoje, a partir das 16 horas, com sessão de autógrafos da escritora. Entrada franca.

Na vida e na obra da jornalista curitibana Teresa Urban, 67 anos, parece não haver muito espaço para a ficção. Ela sempre andou perto demais da realidade – foi presa política durante o regime militar, pioneira na imprensa brasileira na cobertura do meio ambiente, militante de tantas causas que mal cabem nos 20 livros que levam sua assinatura. Os que a conhecem nem sequer conseguem imaginá-la fazendo outra coisa senão estudando, por exemplo, as ciladas do Código Florestal ou abraçando uma boa briga nas arenas políticas, uma de suas especialidades.

Mas para surpresa, a companheira Teresa, um dia chamada de "Batista" nos subterrâneos da resistência, guardava um segredo: desejava fazer revolução, é claro, mas também se esbaldar no devaneio. O desejo, arrisca, nasceu na meninice, quando influenciada pelo pai, o polonês Estanislau, leitor de grande apetite, desprezava bailes de debutantes no Clube Juventus para ter com Dostoievski. O sonho, contudo, quase acabou.

Somente em 2005 a jornalista decidiu sentar na frente do computador, dar uma pausa nos relatórios ambientais e começar a escrever sem compromisso com as tabelas de Excel. No princípio era um jogo. Pôs-se a emendar as centenas de pequenas histórias nonsense recolhidas durante as reportagens que fez para veículos como Veja e O Estado de S.Paulo, para citar dois. Não serviam para serem publicadas, mas atiçavam sua verve de escritora. Quem sabe houvesse um fio.

Havia. Desse emaranhado de papeletes resultou um suspense de ficção – Dez Fitas e um Tornado, com lançamento hoje à tarde na Livraria Arte & Letra, que publica a edição. Escriba experiente, a autora se mostra à vontade em território estranho. Sua prosa é ágil, sem gordura, talhada para ser lida num fôlego só, virtude de quem passou quatro décadas tendo de dizer muito em pouco espaço, uma das dores das lides jornalísticas.

Tragédia brasileira

Como se trata de Teresa Urban, contudo, a velocidade não redunda em falta de ter o que dizer. Dez Fitas e um Tornado usa da mecânica irresistível dos thrillers policiais para conduzir, sem dó, a um mergulho na tragédia brasileira durante e depois da ditadura militar. "Não é um livro bonzinho", reconhece, entre uma baforada e outra nas suas inseparáveis cigarrilhas ecológicas Talvis e algum afago no vira-lata Van Dog, um dos cães que recolheu no sobrado onde mora, no Jardim das Américas.

A começar pelo protagonista – José Suçuarana, uma espécie de "filho do Brasil", mas sem mandato. Sim, seu nome tem a ver com a toada cabocla (lindamente regravada por Maria Bethânia no disco Brasileirinho), mas que não se espere dele que seja um homem dado a arroubos libertários. "Suçu" é um sujeito indiferente, a passeio pelas estradas esburacadas de um país nada cordial.

Pelo caminho encontra um militar de alta patente – cuja moral não vale uma medalha de lata de margarina Primor –, um empresário merecedor dos infernos, um militante de esquerda, uma paraguaia, meretrizes dos sertões paranaenses. O militante – codinome "Pernambuco" – é o personagem mais cativante de toda a obra, descrito como uma figura em sépia, recurso sob medida para que não vire herói de quadrinhos. Esse cuidado em não manipular pela emoção é a maior virtude do trabalho.

Ao contrário de tantas produções que têm a ditadura como cenário, Dez Fitas e um Tornado passa longe dos truques do gênero. Urban não está ali para convencer o leitor de nada. Não quer arrebanhá-lo. Consegue esse feito ao colocar no centro da cena não um idealista, a quem o leitor deve admirar, mas um distraído de consciência ingênua e talento para se dar bem. Suçuarana, filhote de Macunaíma, como admite Teresa, é muito parecido com milhares de cidadãos que tocavam viola enquanto assistiam à derrocada ética do país. Deu no que deu – tráfico, corrupção, violência em estado bruto. É disso que o texto trata.

Parece cedo para afirmar, mas há indícios de que a primeira ficção de Urban vá ocupar a estante onde estão Eu Vos Abraço, Milhões, último livro de Moacyr Scliar, e filmes como Quase Dois Irmãos, de Lúcia Murat; e Ação entre Amigos, de Beto Brant. Essas obras não se fiam em contar o que o regime militar fez, mas o que causou nas entranhas da pátria e de sua gente. Dá frios na espinha – Teresa não nos poupa de senti-los.

Autora é estudiosa da Guerrilha de Porecatu

"A verdade mora num poço", repete a jornalista Teresa Urban, ao explicar sua motivação para se atirar, sem boias, nas águas da ficção. Sempre desconfiou que seria bom domar sua célebre impaciência e escrever com liberdade – e agora viu que estava certa. Se vem mais ficção por aí, ela não responde. No momento, avia um livro sobre armarinhos curitibanos, em parceria com o fotógrafo Nego Miranda. E lembra que durante a escritura de Dez Fitas e um Tornado lançou o juvenil 1968 – Ditadura Abaixo, em parceria com Guilherme Caldas. Teresa anda mesmo à solta. Tudo pode acontecer.

Não foi sempre assim. Durante muito tempo, a autora pensou que a obra de sua vida seria uma espécie de grande reportagem sobre a Guerrilha de Porecatu, conflito de terra no Paraná entre 1944 e 1951. Enquanto ganhava a vida como jornalista, recolhia informações, depoimentos – incluindo entrevistas com o comunista e técnico de futebol João Saldanha, parte dessa história. Não conseguiu tempo para a tarefa e doou o acervo para a Universidade Estadual de Maringá.

Ficou um amargo. Urban não diz abertamente, mas ao se enveredar pela ficção adocica e compensa a frustração deixada por Porecatu, episódio para o qual seria a narradora perfeita. Em Dez Fitas... dilui o que gostaria de dizer numa obra clássica de jornalismo. Ela admite:"Essa escolha me fez um bem danado".

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