• Carregando...
 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Interromper a rotina em um outro país e voltar para vida de sempre. Última carta de Portugal.

Quando está chegando a hora de deixar um país onde se conseguiu minimamente ser feliz, pois felicidade só nos é ministrada em doses homeopáticas, vem uma nostalgia antecipada. Você está fazendo algo rotineiro, caminhando por uma rua qualquer, e então se dá conta de que nunca mais passará ali.

Tudo vira adeus.

Para não cair na melancolia, é preciso viver os últimos dias como se fossem os primeiros.

Sábado, antes de partir, meu filho e eu fomos cortar o cabelo na Barbearia Vasconcelos. São quatro cadeiras e todos conversam olhando para os espelhos. Falamos de bons lugares para passar as férias de verão – agosto é um mês animado na Europa – e todos opinam sobre as praias do Algarve.

Na hora de ir embora, digo um “até qualquer dia”. Os barbeiros que nos atenderam neste período perguntam se já estamos de partida. Confirmo.

– Como voaram estes quatro anos! – um deles afirma.

¬– Pois é – digo, sem corrigir o equívoco.

Foi apenas um ano.

– Mas vocês voltam, não voltam?

– Qualquer hora passamos por aqui – minto.

Cada um tem uma noção própria de tempo. No nosso retorno, experimentaremos o contrário. Vários amigos nos perguntarão se ficamos três meses fora. Outros falarão em seis meses. Quando eu explicar que foi um ano, eles se espantarão.

Nas últimas semanas, parei de ler os jornais lusíadas. Para ir me desligando. Mas uma coisa que fiz (a princípio sem pensar) foi tocar amorosamente os velhos prédios.

Ao passar por paredes revestidas de azulejos, alguns em alto-relevo, sentia vontade de experimentar a sua textura. Depois, se encontrava uma fachada de onde haviam retirado algumas peças, acariciava as feridas abertas nos azulejos, sujando a mão de uma argamassa centenária. Diante de batentes e portas de granito, não resistia e acabava apalpando a aspereza das pedras.

– O que você está fazendo? – me perguntou minha mulher.

– Me despedindo de Portugal.

Ela riu. E quando via um sobrado antigo, com revestimento do século 17 ou 18, chamava a minha atenção. Discretamente, eu corria os dedos sobre aquela superfície lisa, com as ranhuras das juntas, mais ou menos como quem afaga um animal.

Neste período, fazíamos planos para quando voltarmos ao Brasil. O tempo estava dividido. Vivíamos um antes. Planejávamos um depois.

As últimas semanas foram dedicadas a uma tarefa meticulosa. Preparar as malas. E sempre faltava mais uma, obrigando-nos a ir às lojas. Até atingirmos o limite. Era a hora de decidir o que deixaríamos. Daqui para frente, vamos nos lembrar que ficou lá em Portugal tal coisa que agora seria tão útil.

Malas prontas, úteros bojudos no hall de entrada do apartamento, inicia-se o último jogo. Cada um diz o que vai fazer ao chegar.

– A primeira coisa que vou fazer, assim que chegar ao Brasil...

Todos aguardam o final da frase, que mantenho suspensa por uns segundos.

– ... é começar a sentir saudades de Portugal.

É o que estou fazendo aqui, nesta última crônica sobre o meu tempo português.

Miguel Sanches Neto tem 36 livros publicados, o mais recente é “A Bíblia do Che” (Companhia das Letras, 2016). Ele viveu em Braga entre agosto de 2015 e julho de 2016, de onde mandou a série “Cartas de Portugal” para a Gazeta. Esta é sua última carta para a coluna.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]