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 | Ilustração: Robson Vilalba
| Foto: Ilustração: Robson Vilalba

Em 1964, nesta época do ano, o Brasil enfrentava um período de instabilidade política que culminaria, no dia 31 de março, no golpe militar que derrubou o governo do presidente João Goulart. Começava ali uma ditadura militar que se estenderia por 21 anos – um período mais longo do que o imaginado inicialmente pelos que arquitetaram a tomada de poder. No dia seguinte ao afastamento de Jango, as manchetes dos jornais falavam em ressurgimento da democracia e exaltavam o heroísmo das Forças Armadas. Começava ali um jogo de palavras, de manipulação de informações, que era imposto aos jornais, mas que também refletia o apoio que parte da sociedade dava à troca forçada de comando no país (os militares se referiam a ela como "Revolução"). Construia-se uma relação do comando militar com a sociedade que se baseava no argumento de que era preciso defender o país da ameaça comunista e implantar o que chamavam de "verdadeira legalidade", instituída com a posse do marechal Castelo Branco na Presidência da República.

Os presidentes militares forem se sucedendo (foram cinco no total) e o controle sobre a sociedade recrudesceu com o Ato Institucional Número 5 (AI-5), de 1968, que gerou um aumento nos casos de prisão, tortura e desaparecimento de militantes da oposição, além da censura à imprensa.

A prosperidade econômica dos primeiros anos, o chamado Milagre Brasileiro, blindou os presidentes militares e seus ministros. Mas a inflação e a dívida externa começaram a provocar o descontentamento da população e de alguns grupos de militares. O general Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979) deu início ao processo de abertura política, embora os anos seguintes tenham sido marcados por atos violentos do regime, como os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975) e do operário Manoel Fiel Filho (1927-1976).

Profusão

A revogação do AI-5 só iria acontecer em 1978. A Anistia, em 1979, trouxe de volta os exilados políticos, que contaram sua versão dos fatos. Foi nesse período que a censura prévia a espetáculos e publicações acabou. "A partir daí começa a haver um lançamento em profusão de obras relativas à ditadura. Nos anos 90 há certo decréscimo das produções. Agora voltam a crescer", afirma a professora Maria Aparecida Aquino, doutora em História Social pela USP, que sugeriu alguns dos títulos aqui listados. A ditadura militar acabou em 1984, quando um colégio eleitoral elegeu um presidente civil, Tancredo Neves.

Agora, não só livros novos, mas também reedições de obras importantes sobre aquele período estão surgindo. Com a instalação, em todo o país, das comissões da verdade, que deram mais voz às vítimas e possibilitaram o aparecimento de novos documentos, houve aumento no número de livros lançados.

A pressão pela abertura total dos arquivos do período continua, já que boa parte ainda está inacessível, impedindo que a história continue a ser recontada. "64 sempre será reescrito sob diferentes perspectivas. Mas é importante notar que a geração dos protagonistas está desaparecendo. Quem tinha mais de 30 anos em 64 hoje tem mais de 80 anos", comenta o professor Ricardo Costa de Oliveira, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor da Universidade Federal do Paraná, que também auxiliou na indicação dos livros.

Das memórias, relatos, depoimentos, biografias, crônicas jornalísticas, teses acadêmicas e histórias políticas sobre o regime militar que foram transformados em livros, alguns alcançaram um notável sucesso editorial. Figuraram na lista de best sellers e tornaram-se assunto de rodas acadêmicas, mas principalmente não acadêmicas. No texto O Sacerdote e o Feiticeiro: uma Análise da História Política e Militar do Brasil Pós-64 o doutor em Ciência Política pela Unicamp e professor na UFPR Adriano Codato resume a importância dessas publicações: "elas pautaram não somente o debate, mas principalmente a interpretação sobre a política brasileira contemporânea. Exagerando, era como se a cada novo lançamento uma parte da verdade histórica – ou a verdade sobre um determinado governo – fosse enfim descoberta e revelada".

Os livros escolhidos aqui abordam a violência, tortura, reparação às vítimas, mobilizações civis, a dificuldade em acessar os arquivos do período e as políticas de memória, desenvolvidas para que o silêncio e o esquecimento não sejam perigosamente eternizados.

Biblioteca

Confira uma seleção de livros essenciais para entender o período da ditadura militar no Brasil:

O Que é Isso, Companheiro? (2009)

Fernando Gabeira. Companhia das Letras, 190 págs., R$ 21,50. Romance-depoimento.

"Um dia vão nos entender". A frase que abre um capítulo do livro mostra o desapontamento de um dos participantes do histórico comício de Primeiro de Maio, de 1968, contra o arrocho salarial e a ditadura. A maioria da população preferiu acompanhar uma partida de futebol no Maracanã do que ir à rua protestar. Lançada em 1979, a publicação é considerada um marco para os estudiosos do tema. Em uma época em que não havia livros relatando a militância política, o jornalista Fernando Gabeira descreveu a vida dos militantes, a guerrilha, as estratégias usadas para trocar de cadeia e ser enviado para uma "melhor", mais próxima dos amigos, e a atmosfera marcada pela tortura e pelos cadáveres. O livro conta como foi o sequestro de Charles Elbrick (1908-1983), embaixador dos Estados Unidos, do qual Gabeira participou. O livro teve mais de 40 edições e deu origem ao filme, de mesmo nome, do diretor Bruno Barreto.

Além do Golpe (2004)

Carlos Fico. Record, 391 págs., R$ 50. História do Brasil.

Um dos méritos do historiador Carlos Fico foi reunir 75 textos de difícil acesso, entre eles discursos e notícias de jornal. O autor dá o caminho das pedras para aqueles que buscam acervos de documentos sobre o período da ditadura. Com base em papéis liberados pela Casa Branca, o historiador traça o roteiro completo das operações secretas que culminaram na derrubada de João Goulart. O fechamento do Congresso Nacional pelo governo Castelo Branco e a criação do Serviço Nacional de Informações pelo general Golbery do Couto e Silva são analisadas no livro. A publicação traz, ainda, um guia de livros, artigos e teses classificados por temas como censura, economia, tortura, luta armada e outros. Reproduz os atos do chamado Comando Supremo da Revolução, que suspendiam os direitos políticos de cidadãos, além de apresentar uma cronologia dos episódios políticos de 1961 a 1985.

Desarquivando a Ditadura – Memória e Justiça no Brasil – 2 Volumes (2009)

Organização de Cecília MacDowell Santos, Edson Teles e Janaína de Almeida Teles. Hucitec, 591 págs., R$ 82 (ambos). História do Brasil.

A pluralidade dos autores dos 27 artigos e ensaios que fazem parte dos dois volumes do livro dão uma visão crítica e abrangente sobre as violações dos direitos humanos durante a ditadura. Historiadores, cientistas sociais, filósofos, críticos literários, jornalistas, juristas e profissionais do direito escrevem sobre memória política e justiça. Contam histórias de resistência e traçam um contorno da ideologia militar. O acesso a informações e aos arquivos públicos, a interpretação da lei de anistia, as reparações às vitimas e punições aos torturadores constituem, no Brasil pós-ditadura, objetos de conflito que estão no centro do debate político atual e merecem discussão aprofundada no livro. A leitura proporciona a reflexão sobre até que ponto o processo de indenizações aos que viveram a repressão é suficiente para proporcionar as pazes com o passado. E mais: qual a ligação das ações políticas do presente com a nossa herança autoritária?

O Fantasma da Revolução Brasileira (2010)

Marcelo Ridenti. Unesp, 324 págs., R$ 48. Ciências Sociais/ Ciência Política.

O livro de Marcelo Ridenti é o primeiro balanço notadamente sociológico sobre a luta armada contra a ditadura. Com base em 35 entrevistas, o autor dá voz aos militantes e tenta encontrar conexões entre depoimentos que resgatam casos de tortura e morte.

O autor examina os grupos de esquerda, armados ou não, que se formaram no Brasil nas décadas de 1960 e 1970, com ênfase para o líder na época, o PCB.

No capítulo dedicado às artes, ao lembrar a Passeata dos Cem Mil, o autor aproveita para fazer uma análise sobre o papel dos artistas que ajudaram financeiramente as organizações e tiveram papel decisivo no processo histórico. A participação dos trabalhadores urbanos e rurais, reprimida com o fechamento dos sindicatos, a vida dos militantes no pós-1969 e AI-5 e a mulher nas organizações de esquerda também são investigadas. Ridenti utiliza estatísticas do projeto Brasil Nunca Mais para construir uma narrativa que equilibra dados e objetividade historiográfica com a preocupação de não se afastar do leitor.

JK e a Ditadura (2012)

Carlos Heitor Cony. Objetiva, 240 págs., R$ 40. Biografia e Memória.

A descrição mais minuciosa da morte de Juscelino Kubitschek (1902-1976) num desastre de automóvel cercado de mistérios, é o que, basicamente, diferencia JK e a Ditadura (2012) de dois outros livros de Cony. União de JK: Memorial do Exílio (1982) e O Beijo da Morte (2003), a publicação faz um raio X de todas as hipóteses de acidente ou atentado.

Cony recorda o quanto assustou o regime militar a formação da Frente Ampla que uniu os adversários políticos Juscelino (liderança de centro), Carlos Lacerda (direita) e João Goulart (esquerda). A Frente foi extinta e os três signatários morreram num período de oito meses.

As memórias registradas no livro são transcrições das longas conversas resultantes do convívio de Cony com JK no período que vai de 1969 até a morte do presidente em 1976. A enorme quantidade de cartas e bilhetes – que ele enviou aos amigos e parentes – em que expressava a vontade de voltar ao Brasil, também ajudaram o escritor a construir a biografia.

Série A Ditadura (edição revista e ampliada disponível a partir do dia 19)

Elio Gaspari. Intrínseca, 500 págs. (em média), R$ 39,90 (cada) e R$ 14,90 (e-book/ cada). História do Brasil.

Durante os anos em que trabalhou como jornalista, Elio Gaspari aproximou-se de Heitor Aquino Ferreira, secretário do general Golbery do Couto e Silva. Golbery foi chefe da Casa Civil nos governos Médici e Figueiredo e era tido como um grande negociador contrário à "linha dura" dos militares. Daí a importância do material guardado por seu secretário: documentos e 222 horas de gravações, além de 1,5 mil páginas de diários, em que registrou os bastidores do poder entre 1964 e 1975. Este arquivo foi entregue por Heitor Aquino Ferreira a Gaspari, que o utilizou como base para escrever os quatro livros sobre os governos militares: A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e A Ditadura Encurralada, que serão relançados na próxima quarta-feira, 19, em edição revista e ampliada pela editora Intrínseca. A narrativa detalhada e saborosa de Gaspari passa pelo golpe em si, a disputa entre as diferentes correntes de pensamento nas Forças Armadas e as escolhas internas para definir os presidentes, o avanço da "linha dura" trazendo violência para a repressão contra a oposição, até chegar na segunda metade da década de 70, quando o regime dá mostras de esgotamento e se inicia o processo de abertura.

Um Acerto de Contas com o Futuro: a Anistia e Suas Consequências – Um Estudo do Caso Brasileiro (2006)

Glenda Mezzaroba. Humanitas/Fapesp, 271 págs. R$ 28. História do Brasil/Direitos Humanos.

A cientista política Glenda Mezzaroba analisa o processo de anistia iniciado em 1979, recuperando o contexto histórico que antecede a concessão do benefício. Investigações em documentos oficiais, entrevistas e artigos da imprensa resultaram numa narrativa competente, adquirida com a experiência como jornalista. Com minúcia, a autora, especialista em justiça de transição, estuda a responsabilidade do estado brasileiro pelas violações de direitos humanos, o direito dos familiares de desaparecidos de requerer atestado de óbito e indenizações, a reintegração aos cargos dos quais as vítimas foram afastadas devido à perseguição política e a contagem do tempo do afastamento das atividades.

No livro são elencadas as penas adotadas com maior frequência pelo regime autoritário. A abordagem sobre a pena de morte, estabelecida pelo Ato Institucional Nº 14, oficialmente nunca utilizada, descreve as formas empregadas pelo governo para eliminar os adversários, como as execuções sumárias e as sessões de torturas.

Almanaque 64 (lançamento em março)

Ana Maria Bahiana. Companhia das Letras, 240 págs., preço a definir. Jornalismo.

Tanto a linguagem escrita quanto a visual de Almanaque 1964 tem forma leve e sedutora. O estilo da jornalista Ana Maria Bahiana é fluente e pop. Ela faz uma análise mês a mês do que aconteceu em 64. Às ilustrações e reproduções de publicações daquele período, mesclam-se curiosidades gráficas. O contexto político, mas também a vida cultural não só no Brasil, mas no exterior, aparecem com bastante detalhamento. Nara Leão, Rolling Stones, Glauber Rocha, Millôr Fernandes, Beatles, Chico Buarque, Bob Dylan, Clarice Lispector. A imensa lista de grandes nomes da cultura que estavam ativos e produzindo obras-primas naquele período permeiam a narrativa. O cenário musical também aparece no filme 1972, primeiro longa-metragem de Ana Maria.

Um Homem Torturado: nos Passos de Frei Tito de Alencar (lançamento em abril)

Leneide Plon-Duarte e Clarisse Meireles. Civilização Brasileira, 364 págs., preço a definir. Biografia.

Frei Tito, 28 anos, preferiu a morte à convivência com o fantasma da tortura. O corpo, avistado em setembro de 1974, por um camponês, pendia de uma árvore às margens do rio Saône, na França.

Os passos de Tito de Alencar Lima desde o dia em que foi preso e torturado até sua morte fazem parte da memória de 69 prisioneiros políticos que deixaram o Brasil junto com ele. Ouvidos pelas autoras do livro, eles contextualizaram os fatos históricos em que o frade esteve envolvido, direta ou indiretamente, como o movimento estudantil de 1968, as grandes passeatas e o congresso da UNE em Ibiúna (SP), que foi realizado num sítio conseguido pelo frei. Tito também daria apoio logístico à Ação Libertadora Nacional, de Carlos Mariguella. Na capital francesa, militou ao lado de brasileiros na denúncia das torturas praticadas pela ditadura, ativismo que ficou registrado em entrevistas à imprensa europeia. O livro aborda a veneração popular a frei Tito, sobretudo no Ceará. Para reconstituir a vida dele no exílio francês, as autoras foram ao encontro do psicanalista que o tratou até a morte.

1964: o Golpe Que Derrubou um Presidente e Instituiu a Ditadura no Brasil (lançamento em março)

Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes. Civilização Brasileira, 420 págs., R$ 40. História do Brasil.

Os historiadores Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes fogem das análises que partem do princípio de que o golpe de 1964 foi algo inevitável. As decisões tomadas pelas autoridades originaram acontecimentos que, segundo eles, se acreditava poder controlar e que resultaram na crise política e militar, além da ruptura do processo democrático. A derrubada de João Goulart e a história envolvendo sua permanência na presidência entre 1961 e 1964 é a estratégia usada para construir a narrativa que termina com o golpe não só militar, mas civil, como os autores fazem questão de frisar.

O livro apresenta cópias de notícias de jornal, depoimentos de participantes e de pessoas que, posteriormente, avaliaram o momento histórico. Cartas de leitores, pesquisas do Ibope, programação da televisão e cenas do cotidiano da população dão o clima da época.

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