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Siri Hustvedt: memórias do pai morto pontuam narrativa ficcional | Bel Pedrosa/Divulgação
Siri Hustvedt: memórias do pai morto pontuam narrativa ficcional| Foto: Bel Pedrosa/Divulgação

"Minha irmã chamou aquela temporada de ‘ano dos segredos’, mas agora, quando penso nisso, entendo que foi um tempo não do que existia, mas sim do que não existia. Um paciente certa vez me disse: ‘Há fantasmas que andam dentro de mim, mas nem sempre eles falam. Às vezes, não têm nada a dizer’. Sarah, na maior parte do tempo, estreitava bem os olhos ou os mantinha fechados porque temia que a luz a cegasse. Acho que todos temos fantasmas dentro de nós, e é melhor quando eles falam do que quando não falam."

Trecho de Desilusões de um Americano, de Siri Hustvedt, traduzido por Rubens Figueiredo.

O tema de Desilusões de um Americano é a solidão e talvez isso baste para te convencer a ler ou a evitar a história. A autora Siri Hustvedt esquadrinha o assunto usando como referência o médico e psicanalista Erik Davidsen, o narrador. Ele assimila a morte do pai, Lars, e o fim do seu casamento sem filhos. Com uma noção cada vez mais clara de sua solidão, é capaz de falar em voz alta consigo mesmo sobre as carências evidentes. "Eu sonhava em ter companhia, também, em ter conversas, fazer caminhadas, sair para jantar, além de sexo", diz.Parte delas aflora com a chegada de uma nova moradora no prédio, Miranda, a jovem mãe da es­­perta Eglantine, de 5 anos. A mulher é arredia no início, mas, aos poucos, Erik se aproxima de Eggy, até o dia em que a mãe não tem a quem recorrer durante uma emergência, a não ser ao vizinho.

O psicanalista cuida da criança madrugada adentro e, mal disfarçando o interesse, questiona Miranda sobre os fatos que a levaram a sair de casa naquela hora e voltar com uma ferida de faca na mão.

Numa ação paralela, Inga, a ir­­mã de Erik, sofre um luto duplo. Além do pai, ela perdeu o marido, Max Blaustein. Max era um escritor cultuado, com uma horda de fãs inconvenientes, um personagem que remete a Paul Auster (de Trilogia de Nova York, na verdade, o marido de Siri). Dada a informação, é inevitável relacionar o incômodo de Inga com a fama do marido morto e as perturbações supostamente experimentadas por Siri.

A narrativa se desdobra entre os dois irmãos e trechos do livro de memórias que o pai deles legou à família. Em meio às anotações e a documentos encontrados no escritório de Lars, Erik e Inga en­­contram uma carta misteriosa, de uma certa Lisa que pede ao então jovem imigrante norueguês silêncio sobre um acontecimento que parece importante, mas não é descrito por ela.

Enquanto Inga tenta descobrir detalhes sobre o episódio, Erik se envolve mais e mais com Miranda e seu ex-marido artista, um sujeito estranho que fica enviando fotos da mulher e da criança com intervenções feitas a lâmina, raspando os olhos da ex e recortando a menina (ele está por trás também do corte na mão de Miranda).

Há uma certa melancolia na voz de Erik. Lembrando sua infância, ele diz: "É esquisito que sejamos todos compelidos a repetir a dor, mas passei a encarar isso como uma verdade. O que antes existia não nos abandona mais".

Além de Desilusões de um Americano, a Companhia das Letras pu­­blicou também O Que Eu Amava e O Encantamento de Lily Dahl. Siri Hustvedt tem várias peculiaridades que podem destacá-la. Poucas vezes a literatura retratou tão bem as artes plásticas como em O Que Eu Amava – com belas descrições do processo criativo de um artista e de suas obras. As artes estão para o trabalho anterior de Siri como a neurologia para o livro novo.

Falando sobre memórias e as funções do cérebro – usando Inga, uma pesquisadora e autora de livros de não-ficção –, Siri se refere ao tempo como "uma faculdade da linguagem, da sintaxe e da flexão verbal", e comenta a maneira como as pessoas sentem necessidade de organizar as ideias com início, meio e fim, embora os fragmentos de memórias não obedeçam a qualquer coerência – até que sejam organizados em palavras. Tanto quanto contar uma história, a escritora parece interessada também em envolver o leitor com ideias. Desilusões de um Americano é ainda um projeto que fa­­la de questões íntimas: assim como seus personagens, Siri também perdeu o pai, em 2003. Nu­­ma nota de agradecimento, ela conta que todos os trechos do diário de Lars Davidsen são, na verdade, excertos das memórias es­­critas pelo patriarca da família Hustvedt.

Serviço: Desilusões de um Americano, de Siri Hustvedt. Companhia das Letras, 368 págs., R$ 49.

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