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O enredo tem como personagem central a professora Juliana (Bruna Linzmeyer), que chega à fictícia Vila de Santa Fé para alfabetizar crianças (e também adultos) | Divulgação
O enredo tem como personagem central a professora Juliana (Bruna Linzmeyer), que chega à fictícia Vila de Santa Fé para alfabetizar crianças (e também adultos)| Foto: Divulgação

Reboot

Benedito Ruy Barbosa prefere chamar a nova versão de Meu Pedacinho de Chão de reboot e não de remake, uma vez que a trama, embora tenha a mesma premissa da original e trate de muitos dos mesmos temas, foi reinventada enquanto fábula e agora ele e seus coautores, a filha Edilene Barbosa e o neto Marcos Barbosa, não tenham mais de driblar o crivo da censura.

  • Pituca (Geytsa Garcia) e Serelepe (Tomás Sampaio) parecem viver em um mundo à parte, mas sofrem com as ações dos adultos
  • Júlio Sumiu é mau exemplo de cinema influenciado pela televisão

A telenovela, embora não seja uma forma de expressão audiovisual genuinamente brasileira, é, queiram seus detratores ou não, um produto cultural essencial para quem pretende saber a quantas anda o país, onde o gênero foi reinventado como se fosse produto nativo.

Os folhetins, sobretudo aqueles realizados e veiculados pela Rede Globo, acabam funcionando como caixas de ressonância para diversas questões nacionais, que vão do comportamento à política. Ainda que, na vida real, raramente desencadeiem discussões mais consistentes e aprofundadas.

Também na forma, a novela terminou por influenciar a linguagem dramatúrgica de outros meios audiovisuais, sobretudo o cinema nacional contemporâneo, em sua encarnação mais popular, que tem levado milhões de espectadores às salas de exibição com produções, quase sem exceção comédias.

Esses filmes emulam e até diluem a linguagem televisiva e, não por acaso, usam grandes nomes da telinha como chamarizes de público, em um processo de retroalimentação questionável, senão perigoso. Exemplo disso é o formulaico Júlio Sumiu, de Roberto Berliner, com Lilia Cabral e Fiuk, em cartaz.

Esse fenômeno leva a uma inevitável pergunta: se o cinema que faz sucesso no Brasil se parece tanto com a produção televisiva, será que está ocorrendo, de fato, uma formação de plateia para a produção nacional?

Meu Pedacinho de Chão

Eis que, em meio a esse cenário confuso, surge na grade da Rede Globo, em pleno horário das 18 horas, uma novela chamada Meu Pedacinho de Chão, que estabelece com o teatro e com o cinema um diálogo inesperado, e muito bem-vindo, porque aposta no estranhamento, no diferente, correndo o risco de afugentar o público ao não lhe entregar um produto convencional, já testado e aprovado.

O veterano novelista Benedito Ruy Barbosa (de sucessos como Renascer, Rei do Gado e Terra Nostra, entre outros), hoje aos 83 anos, foi revisitar uma novela que escreveu, em 1971/72, também com o título de Meu Pedacinho de Chão, e exibida à época pela Globo e pela TV Cultura, simultaneamente.

Levada ao ar em pleno regime militar, no auge da censura, o autor hoje admite que, nas entrelinhas dos 185 capítulos do folhetim original, ele queria discutir, de forma subliminar, questões como reforma agrária, o poder quase feudal dos coronéis no interior do país e a falta de acesso à educação no Brasil rural. Tudo isso por trás de uma história aparentemente ingênua, com forte apelo para o público infantojuvenil.

Fábula

Ruy Barbosa prefere chamar a nova versão de Meu Pedacinho de Chão de reboot e não de remake, uma vez que a trama, embora tenha a mesma premissa da original e trate de muitos dos mesmos temas, foi reinventada enquanto fábula e agora ele e seus coautores, a filha Edilene Barbosa e o neto Marcos Barbosa, não tenham mais de driblar o crivo da censura.

O enredo tem como personagem central a professora Juliana (Bruna Linzmeyer), que chega à fictícia Vila de Santa Fé para alfabetizar crianças (e também adultos) e se depara com uma população oprimida pelo coronel Epaminondas (Osmar Prado), latifundiário que manda e desmanda na região.

A jovem se vê dividida entre o amor sem medidas e acanhado do peão simplório Zelão (Irandhir Santos) e o assédio de Ferdinando (Johnny Massaro), filho do coronel, um jovem ambíguo que, ao mesmo tempo em que enfrenta o pai e aparenta ter boas intenções, talvez seja apenas uma versão repaginada de Epa, como seu pai é chamado na intimidade.

Em meio a esse jogo de forças, e aparentemente alheios a tudo, estão as crianças Pituca (Geytsa Garcia), Serelepe (Tomás Sampaio) e Tuim (Kauê Ribeiro de Souza), que parecem viver em um mundo à parte, mas cujas vidas são afetadas diretamente pelos conflitos vividos pelos adultos.

Pituca é a filha mais nova do coronel Epaminondas, com sua segunda mulher, Catarina (Juliana Paes). E sua proximidade, sobretudo de Serelepe, incomoda. O menino é órfão, pobre, mas livre e dono do próprio nariz, e é visto como uma ameaça à ordem vigente. Epa o quer bem longe da filha, mas não consegue.

Estética

Existe por trás de Meu Pedacinho de Chão, além do intuito de Benedito Ruy Barbosa reinventar sua própria obra, o gênio criativo do diretor Luiz Fernando Carvalho, com quem o autor já havia trabalhado em novelas como Renascer e Rei do Gado.

Carvalho há anos vem desenvolvendo projetos de estética ousada dentro da Rede Globo, como as microsséries Hoje É Dia de Maria (2005) e Capitu (2008), inspirada no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Em comum com essas produções, Meu Pedacinho de Chão tem a fuga do realismo, tanto na estética quanto na narrativa e nas interpretações.

Na atual novela da seis, além do caipirês falado pelos personagens, à exceção da professora Juliana, chama a atenção a requintada direção de arte e os figurinos, que evocam os contos de fada e têm pontos em comum com as concepções visuais vistas em filmes de cineastas como o norte-americano Tim Burton (de Edward Mãos-de-Tesoura) e o australiano Baz Luhrmann (de O Grande Gatsby).

Na cidade cenográfica, casas e prédios foram revestidas de latas que remetem ao material utilizado por antigos brinquedos do século 19. Tudo, dos animais às árvores e plantas, parece evidentemente artificial, mas, pela mão mágica de Carvalho, ganha vida na imaginação do espectador. A verdade dramática emerge com grande potência do que não finge ser real. E renova a televisão brasileira.

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