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Carrère: personagens lutam para não cair no abismo, apesar da força das ondas | John Foley/Agence Opale
Carrère: personagens lutam para não cair no abismo, apesar da força das ondas| Foto: John Foley/Agence Opale

Além da Vida reconstitui desastre natural em grande estilo

O novo filme de Clint Eastwood, Além da Vida é a primeira produção hollywoodiana de grande orçamento a abordar o tsunami de 2004.

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  • Hereafter, novo filme de Clint Eastwood, inicia-se com sequência que mostra a chegada do tsunami a uma praia asiática. a produção busca reproduzir com fidelidade as dimensões da tragédia

A realidade, todos sabem, é a "mãe" da maior parte das obras de arte. Guerras, revoluções e acidentes naturais, depois que ocorrem, costumam ser incoporados pela ficção. O tsunami que destruiu parte da costa do Sri Lanka, em 2004, é o que deflagra e está presente em quase todo o romance Outras Vidas Que Não a Minha, do escritor francês Emmanuel Carrère, autor premiado pela longa narrativa Férias na Neve.

A obra, que acaba de chegar ao Brasil, foi publicada no ano passado na França, com tiragem inicial de 60 mil exemplares e, além do sucesso de público, arrebatou a crítica. No jornal Libération, foi publicado o seguinte comentário: "Um romance oceânico, cheio de som e fúria". O Le Monde, por sua vez, foi mais longe: "Em um livro arrebatador, Emannuel Carrère chega mais perto da condição humana".

Mas não são elogios nem ex­­pres­­sões de entusiasmo que, em uma breve resenha, podem dar conta do que Carrère conseguiu realizar nessa experiência ficcional, em alguma medida, inédita.

O autor borrou, com maestria, os limites entre realidade e imaginação. E, devido a isso, o leitor pode ficar confuso. Afinal, em diversos trechos do livro o narrador afirma estar citando fatos reais. Ele conta que consultou as pessoas mencionadas, que teriam a possibilidade de vetar alguma passagem que viesse a comprometer a integridade ou provocar constrangimento.

Esse artifício sugere que a realidade é a argamassa de cada linha e entrelinha do livro. Mas Outras Vidas Que Não a Minha é uma obra de ficção, escrita com texto elaborado e, seguramente, a partir do imaginário criativo de Carrère.

Testemunha

Após presenciar o estrago do tsunami no Sri Lanka, o narrador retorna a Paris e se depara com sujeitos que foram vítimas de ondas e marolas da realidade.

No caminho do personagem, surge um casal que perde o filho. Uma desconhecida dele vai morrer, deixando um viúvo e crianças. Há uma galeria de pessoas que, de uma hora para a outra, foi ex­­pulsa do paraíso onde nem sequer sa­­be que habitava. Um ho­­mem perde uma de suas pernas. Outro, luta contra um câncer.

A partir de cada um desses sujeitos, o narrador elabora reflexões e, então, o que era apenas ficção flerta com o ensaio. O texto, durante essas incursões discursivas, deixa de ser descritivo ou composto de diálogos entre personagens, para focar unicamente em digressões a respeito de um único tema.

O que ganha considerável espaço no corpo do romance é um debate a respeito de um possível confronto entre alegria e tristeza. O narrador comenta, com ele mesmo e com o leitor, que há pessoas com sorriso permanente no rosto que chegam a condenar sujeitos macambúzios, como se fosse possível escolher ser alegre, ainda mais quando o chão parece ruir e o cotidiano se torna um pesadelo.

Página após página, Carrère faz ver que a grande onda que arrasou o Sri Lanka, como qualquer outro tsunami, às vezes pode provocar menos estrago do que as pequenas marolas da realidade, que pegam de surpresa todo e qualquer humano, ao virar uma esquina, ao pisar em falso, nesses encontros marcados, dos quais ninguém pode fugir nem evitar. GGG

Serviço:

Outras Vidas Que Não a Minha. Emmanuel Carrère. Trad.: André Telles. Alfaguara. 224 págs. R$ 34,90.

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