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O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da secretaria de governo | Foto: Agência Brasil
O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da secretaria de governo | Foto: Agência Brasil| Foto:

É difícil mensurar o que significa mais de vinte anos de guerra quase ininterrupta. A República Democrática do Congo (RDC), o antigo Zaire, passa por esse cenário, especialmente no leste do país. E um brasileiro atualmente no centro de uma disputa política teve papel em uma das fases mais agudas desse conflito, o general Santos Cruz, atualmente ministro da Secretaria de Governo da presidência de Jair Bolsonaro.

Essa disputa pode servir para uma série de propósitos no mundo da política, alguns não muito solenes ou republicanos. Aqui nesse espaço, em uma intenção construtiva, pode ajudar em duas propostas: expandir o conhecimento do mundo que nos cerca e também aprofundar a compreensão da presença e da história brasileira nesse mesmo mundo. De antemão é interessante notar que a trajetória de Santos Cruz antecede a presença na RDC.

Haiti e Ban Ki-moon

Santos Cruz foi o quarto comandante do componente militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), que existiu de 2004 a 2017, sempre chefiada pelo Brasil. Toda missão internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) que tenha um componente militar possui duas chefias equivalentes, uma militar e uma civil, sempre de países diferentes.

O general foi o militar que ocupou o cargo por mais tempo, de Janeiro de 2007 a Abril de 2009. A maioria dos comandantes esteve no Haiti por um ano e já é notória a presença de ex-comandantes da MINUSTAH em altos escalões do governo federal desde a presidência de Dilma Rousseff. Talvez o nome mais conhecido seja o do general Augusto Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI). O atual comandante do exército, general Edson Leal Pujol, também chefiou o componente militar no Haiti.

O período extenso de Santos Cruz no Haiti é explicado pelo número de crises que ele teve que lidar; ao mesmo tempo, seu papel foi bem-visto, por isso que a extensão de sua presença foi solicitada. Em Fevereiro de 2007, as tropas sob mandato da ONU realizaram uma das maiores ofensivas já executadas pelos capacetes azuis, para a tomada da região de Cité Soleil, subúrbio de Porto Príncipe, capital do país.

Subúrbio é um eufemismo para uma região periférica com condições de vida extremamente precárias para até trezentas mil pessoas. Território disputado por gangues, tanto políticas quanto de criminosos comuns, foi terreno de diversos combates por três meses. No mesmo período de seu comando, Santos Cruz teve que lidar com a ajuda humanitária para efeitos de terremotos e tempestades, embora em menor intensidade do que o terremoto de 2010.

Em Abril de 2008, uma crise política entre o parlamento e o presidente haitiano criou uma situação em que a MINUSTAH era virtualmente o poder da terra, coordenando suprimento de alimentos e de remédios para centenas de milhares de pessoas. Dada a envergadura da MINUSTAH, o então Secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, visitou o Haiti mais de uma vez durante o comando de Santos Cruz, criando uma relação que teria impacto posterior.

A trajetória da MINUSTAH e sua avaliação é um tema que precisaria ser abordado por si só. Na carreira de Santos Cruz, após o Haiti, ocupou postos na hierarquia do exército e, em Novembro de 2012, passou para a reserva, no que seria o fim de sua carreira ativa. Tornou-se assessor especial do Ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, na presidência de Dilma Rousseff. Até quando o telefone tocou em Abril de 2013.

A África disputa o Congo

Internacionalmente, a década de 1990 começou sob a bandeira do otimismo. O fim da Guerra Fria encerrou o medo de uma guerra nuclear apocalíptica. Antigas disputas poderiam ficar de fora e a humanidade poderia se concentrar em temas como o meio-ambiente. O período proporciona a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio-92, e é resumido na equivocada ideia de “fim da História” de Francis Fukuyama.

Essa podia ser a realidade entre as principais potências. Em outras regiões, o fim do receio de uma escalada para uma guerra mundial foi o estopim para conflitos já em gestação. Caso da ex-Iugoslávia e de Ruanda, tomada por violenta guerra civil que durou de 1990 a 1994, infame pelo genocídio da população tutsi nas mãos da maioria hutu. Cerca de um milhão de pessoas foram assassinadas em pouco mais de dois meses.

O conflito de Ruanda transbordou para os países vizinhos, como o Congo, na época ainda chamado Zaire e chefiado pelo corrupto e violento ditador Mobutu Sese Seko. O ditador abrigou as infames milícias hutus que fugiam do novo governo, a milícia interahamwe e os fugitivos génocidaires. A paciência do governo ruandês se esgotou em 1996, invadindo o território vizinho para caçar os grupos hutus. É o início da Primeira Guerra do Congo.

Também chamada de Guerra Africana, esse primeiro conflito durou apenas seis meses. De um lado, Mobutu e seus aliados: Sudão, hutus ruandeses, milícias do Burundi e de Uganda e os angolanos do UNITA. Do outro lado, o líder rebelde congolês Laurent-Désiré Kabila, apoiado pelos exércitos nacionais de Ruanda, Burundi, Uganda e Angola, além dos rebeldes cristãos do sul do Sudão, hoje independentes. Um mini-universo de guerras civis internas travado dentro de apenas um país.

Kabila triunfou e governou a RDC até sua morte em 2001; foi sucedido pelo seu filho que até hoje é a figura mais forte da política local. A paz, entretanto, não durou muito. Ainda em 1998, disputas locais mal resolvidas e mudanças de lado originam a Segunda Guerra do Congo. Kabila agora é apoiado pelos hutus e pelas milícias do Burundi e de Uganda, além dos governos de Angola, Chade, Namibia e Zimbábue.

Contra ele estão grupos rebeldes do leste do país e seus antigos aliados, Ruanda e Uganda, além dos angolanos do UNITA. Após quatro anos de guerra, acordos são assinados em 2002, com a ideia de um governo de unidade nacional, chefiado por Kabila e dividido com Jean-Pierre Bemba, líder rebelde que teve sua candidatura a presidente do Congo indeferida nas recentes eleições em 2019.

Linha de frente

O acordo final não agrada alguns líderes rebeldes. Por ideais políticos? Longe disso. O Congo possui um dos territórios mais ricos do mundo. Sob o solo estão estimativas de vinte e quatro trilhões de dólares em reservas de ouro, cobalto, cobre, diamante e columbita-tantalita, conhecido em inglês como coltan e essencial para a indústria de tecnologia. Dele é extraído, por exemplo, o nióbio, tão citado na campanha política brasileira.

O telefone em que possivelmente algum dos leitores acessou esse texto possui um pouco desses elementos, e 80% das reservas globais de columbita-tantalita estão no Congo. O controle de territórios por milícias permite a mineração ilegal desses recursos, que são contrabandeados para seus destinos finais, como os EUA e a França. Essa é a razão do conflito de Kivu, que dura desde 2004.

Desde 1996, então, o Congo vivenciou apenas breves períodos de paz, com um custo estimado de cinco a oito milhões de vidas, além de deslocados, refugiados e vítimas de atrocidades, como a violência sexual sistemática contra mulheres como arma de guerra. Nesse contexto que, em Março de 2000, é criada a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO).

Embora criticada por seus custos e por casos de corrupção, a MONUSCO teve sucesso em impedir que o conflito se espalhasse e também conseguiu deter os principais grupos não-estatais. E entra o telefonema de Abril de 2013. Por pedido direto de Ban Kim-moon, Santos Cruz foi convidado para comandar o componente militar da MONUSCO. Reconduzido à ativa, chefiou cerca de 23 mil militares de vinte países diferentes.

Especialmente, a MONUSCO contou, sob seu comando, com a Brigada da Força de Intervenção (BIF). Criada no mesmo mês que Santos Cruz assumiu o comando, a BIF foi a primeira força multinacional da ONU estabelecida desde a origem com a autoridade do uso preemptivo da força; em bom português, seus integrantes podiam atirar primeiro. Uma capacidade de iniciativa ofensiva que remete às operações de peace enforcement (“Execução da paz”) na Somália no início dos anos 1990.

Tudo isso não era coincidência. Santos Cruz foi convidado justamente por ser considerado não apenas um comandante com capacidade de articulação ou administração, mas por seu papel como comandante no teatro de operações, na linha de frente. No Congo ele atraiu críticos e admiradores por ir, armado e fardado com o uniforme padrão de selva do exército brasileiro, na linha de frente. Não ficava apenas numa mesa.

Santos Cruz ficou na RDC até Dezembro de 2015. Nesses mais de dois anos conduziu diversas operações, especialmente a ofensiva que retomou a cidade de Goma, na fronteira com Ruanda, e desbaratou o grupo M23, o Movimento 23 de Março; na prática, desertores ruandeses tutsis que perceberam que o contrabando de recursos minerais e a extorsão da população local eram crimes mais rentáveis do que o soldo oficial.

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Tiros disparados em ira

Nos EUA existe uma expressão curiosa, repetida em filmes como Senhor das Armas e Nascido para Matar; “a shot fired in anger”. Numa tradução livre, algo como um tiro disparado com ira, raiva, de forma exasperada. A expressão é frequentemente utilizada em contraste aos disparos feitos em condições seguras, como treinamento ou tiro esportivo, uma distinção do combatente em relação ao entusiasta de armas ou ao militar burocrata.

Desde o início do atual governo, diversos integrantes de origem militar dos altos escalões da administração federal foram alvos de críticas e de disputas políticas. Algo perfeitamente cabível. Ao se tornar um ator político, inclui-se as regras da disputa política e suas críticas, desde as mais fundamentadas até as mais mesquinhas, na busca por ocupar espaços ou simplesmente atingir a reputação de desafetos. Santos Cruz e Heleno, hoje, não são apenas generais; também são governo e, como tal, se tornam foco do escrutínio público.

O que torna o caso de Santos Cruz curioso é, primeiro, a virulência desses ataques, com um palavreado mais adequado aos rivais num estádios de futebol do que ao debate político. Não, não se trata de achar que a política é feita com flores e bombons, mas um nível saudável de tratamento, ainda mais quando vêm de pessoas cuja imagem é diretamente ligada ao governo, com considerável nível de influência, como Olavo de Carvalho.

Essa virulência gera, por óbvio, uma reação. No site oficial do Clube Militar estão em destaque duas notas. Uma chamada “Desagravo e alerta”, assinada pelo coronel Sérgio Paulo Muniz Costa. Outra é a réplica de nota publicada pelo general Eduardo Villas Boas, ex-comandante do exército e atualmente no GSI. Ambas são direcionadas a Olavo de Carvalho. O recado do general é mais específico e sutil, já o texto do coronel é mais amplo e explícito, comparando certas alas políticas atuais com fascistas e integralistas; essa coluna não sabe responder qual o eventual estopim que causou o texto do coronel.

Questões sobre a cobiça pelo posto que Santos Cruz ocupa, disputas entre diferentes alas do governo, publicidade governamental, quem “começou” a briga, visões sobre liberdade nas redes sociais, interpretações ideológicas críticas ao positivismo histórico militar, todas essas questões são deixadas para os colegas, de Gazeta do Povo e de outros veículos, que lidam com a política brasileira. O foco desse espaço é a questão internacional e histórica, que levam ao segundo motivo dos ataques contra Santos Cruz serem insólitos.

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Atualmente, as informações fornecidas pelos militares brasileiros sobre a Venezuela se mostraram mais confiáveis do que as da inteligência dos EUA e o governo está repleto de militares ocupando alguns dos principais cargos técnicos. Quem ganha ou como fica a imagem brasileira quando o seu talvez mais conhecido militar internacionalmente é alvo de uma trama digna de folhetim televisivo?

Mais que isso, qual o risco dessas disputas políticas (que, novamente, são habituais do seu universo) respingarem em questões de Estado, como o exército brasileiro como instituição permanente? Não é difícil encontrar comentários de pessoas nas redes sociais, motivadas pelo caso de Santo Cruz, ofendendo as forças armadas ou os militares como um todo.

Claro que a intenção não é excluir uma análise histórica e política da trajetória das forças armadas brasileiras, algo feito com maestria por cientistas como Celso Castro. Ainda mais em um país em que os militares tiveram tanto protagonismo político. Trata-se de notar como as forças armadas brasileiras acabam como objeto de disputas proselitistas estéreis. E, no caso específico de Santos Cruz, é algo ainda mais sem sentido.

José Pessoa

Não, o general não precisa dessa coluna para se defender, mas é embasbacante ver tal comportamento, além de devaneios como um generalato supostamente comunista ou que Santos Cruz, por ter chefiado tropas da ONU, seria um “agente globalista”. Dado o histórico brasileiro e também a alta proporção de oficiais generais nas forças armadas em comparação com outros países, Santos Cruz é um dos pouquíssimos generais brasileiros com genuína experiência de combate, que ouviu “tiros disparados em ira”. Como chamá-lo de “fracote enfezadinho” ou “engomado”, subtraindo o termo chulo?

Talvez o melhor paralelo com Santos Cruz possa ser buscado em José Pessoa, figura que os leitores talvez conheçam apenas como irmão de João Pessoa, que batiza a capital da Paraíba. José Pessoa faleceu como marechal, após ter sido um dos principais modernizadores do exército brasileiro. Fundador da Academia Militar das Agulhas Negras, defendia que os militares deviam ser separados dos rumos políticos.

Também chefiou a Comissão de Localização da Nova Capital Federal, que analisou e mapeou todo o planalto central, estabelecendo o local exato onde hoje é Brasília. Principalmente, foi o mais destacado militar brasileiro na Primeira Guerra Mundial. Em Outubro de 1917, foi enviado à França para estudar a nova arma de cavalaria, o carro de combate, conhecido popularmente como tanque.

Serviu no front como comandante de um pelotão de carros de combate franceses e participou ativamente da Ofensiva dos Cem Dias, que efetivamente encerrou a capacidade bélica do Império Alemão. Foi promovido ao posto de capitão no campo de batalha e condecorado como comendador da Légion d’Honneur, a mais alta condecoração francesa, além de outras distinções.

Historicamente, tanto José Pessoa quanto Santos Cruz são brasileiros que serviram com distinção sob outros comandos; da França ou das Nações Unidas. Viram de perto os horrores da guerra. Santos Cruz disse em entrevista que “a gente nunca se acostuma com o sofrimento humano”. Além desse paralelo histórico, o contexto atual e internacional repassado nesse espaço talvez colabore com as reflexões e julgamentos dos leitores para responderem as questões citadas anteriormente.  

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