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Foto: Antonio Costa/Arquivo Gazeta do Povo
Foto: Antonio Costa/Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

“Among the oxen (like an ox I’m slow)
I see a glory in the stable grow
Which, with the ox’s dullness might at length
Give me an ox’s strength.

Among the asses (stubborn I as they)
I see my Savior where I looked for hay;
So may my beast like folly learn at least
The patience of a beast.

Among the sheep (I like a sheep have strayed)
I watch the manger where my Lord is laid;
Oh that my baaing nature would win thence
Some woolly innocence!”

(C. S. Lewis, The Nativity)

É Natal, tempo de reler os clássicos. Dentre eles, Charles Dickens. Mas não me refiro aqui, como se poderia esperar, ao célebre Um Conto de Natal, que narra a transformação interior do avarento Ebenezer Scrooge. Falo, em vez disso, de A Casa Abandonada, e mais especificamente daquela personagem que, sob certa perspectiva, poderia ser vista como a antítese mesma de Scrooge: Mrs. Jellyby. Enquanto o primeiro é egoísta e ensimesmado, a segunda nos é apresentada como “dama de notável força de caráter, inteiramente dedicada ao interesse público”. Mrs. Jellyby é uma filantropa e, no momento da narrativa, dedica-se de corpo e alma a um projeto humanitário (agrícola e educacional) junto aos nativos da tribo dos Borrioboola-Gha, pobres habitantes da margem direita do Rio Níger. Essa apaixonada dedicação reflete-se em seus olhos, que, ademais de muito bonitos, parecem mirar sempre além, “como se incapazes de ver algo mais próximo que a África”.

Sim, Mrs. Jellyby é uma mulher magnânima e atarefada, impossibilitada, portanto, pela força mesma de uma generosidade transbordante, de prestar a devida atenção aos hóspedes que lhe vêm à casa. “Como de hábito, meus caros, acham-me assaz ocupada” – diz-lhes, com uma doce aguilhada de orgulho. “No momento, o projeto africano toma todo o meu tempo. Exige que eu me corresponda amiúde com órgãos públicos e indivíduos particulares ao redor do país, ansiosos pelo bem-estar dos de sua espécie”. Assim, a não ser que fossem pessoas demasiado mesquinhas, os hóspedes tinham de compreender por que não houvesse água quente para o banho, por que os cômodos estivessem imundos e sem iluminação, e por que tudo no lar de Mrs. Jellyby parecesse ruir, a começar pelo ânimo do marido e as vestes dos filhos. Estes, aliás, os que mais despertaram a atenção dos visitantes, pois que um prendera a cabeça na grade do quintal, outro caíra da escada, uma terceira cobrira-se de tinta de caneta dos pés à cabeça, e tinham todos olhos remelentos e narizes escorrendo. A própria Mrs. Jellyby, agraciada por Deus com uma vasta cabeleira, não arrumava meio de escová-la, consumida que estava pelos assuntos africanos.

Mrs. Jellyby é o protótipo do que Dickens chama de “filantropia telescópica”, expressão que dá título ao quarto capítulo do livro, e que caracteriza um falso espírito de caridade, menos devotado às necessidades de um outro ser humano de carne e osso do que à vaidade pessoal e à conveniência social do filantropo. Com seus belos olhos voltados para o distante habitat dos Borrioboola-Gha, Mrs. Jellyby negligenciava marido e filhos, fazendo do próprio lar um antiexemplo daquele ideal de prosperidade que alegava querer oferecer ao mundo. Dickens, é claro, trata o tema com o sarcasmo característico, irritando profundamente alguns críticos da época, a exemplo do filósofo John Stuart Mill (uma espécie de feministo vitoriano), que reagiu com síncope de ira à personagem de Mrs. Jellyby. Há, no entanto, muito mais que mera ironia na abordagem do romancista inglês, que ataca um problema antropológico fundamental, de algum modo presente em toda literatura digna desse nome, e que podemos resumir como uma dificuldade extrema de amar o próximo. Não se deve, assim, exagerar na condenação a Mrs. Jellyby, quando mais não seja porque Mrs. Jellyby somos todos nós.

Diferentemente dos Borrioboola-Gha, o próximo nos incomoda, nos confronta, usurpa o nosso espaço e mexe com o nosso orgulho. Não parece haver nenhuma recompensa imediata no ato de amar o próximo. Antes, talvez, pelo contrário: não é infrequente que o próximo nos pareça ingrato, deixando de nos reverenciar tanto quanto imaginamos merecer. Amá-lo, com efeito, não é algo que se preste à autopromoção. Como escreveu o nosso Gustavo Corção em A Descoberta do Outro: “O próximo, com efeito, é intolerável. Sua espessa concretude, seu rosto, seus músculos, seu bigode, nos impelem a derivar nossos bons sentimentos para coisas mais puras e elevadas. Voltamo-nos para a espécie humana, para ideias e causas sagradas. É mais fácil querer bem à humanidade em peso do que ao vizinho que ouve o radioteatro. É mais amplo, mais generoso, falar num microfone virado para o porvir, atirando palavras para um bilhão de ouvidos que ainda não nasceram, do que entrar num quarto cheirando a remédio e a suor”.

É também na difícil e nada glamorosa arte do amor ao próximo que Proust parece estar pensando ao escrever, em No Caminho de Swann: “Quando tive mais tarde ocasião de encontrar, no curso da vida, em conventos por exemplo, encarnações verdadeiramente santas da caridade ativa, tinham geralmente um ar alegre, positivo, indiferente e brusco de cirurgião apressado, essa fisionomia em que não se lê nenhuma comiseração, nenhum enternecimento diante da dor humana, nenhum temor de feri-la, e que é a fisionomia sem doçura, a fisionomia antipática e sublime da verdadeira bondade”. A verdadeira bondade é, pois, discreta. Como se lê no Evangelho (Mt 6,2), ela não “toca trombeta diante de si”.

E só Deus sabe o quão difícil é não trombetear a nossa pretensa bondade, prostituindo-a no lupanário da política. Se há, por exemplo, um elemento psicológico invariável nas grandes ideologias de massa do século 20, é a substituição total, operada na consciência do militante, do amor ao próximo pelo amor à causa. Tendo passado por transformação tão radical, é só mesmo com muito custo (ou por intermédio da graça) que uma personalidade fragmentada pela paixão ideológica pode ser novamente reunida. E, mais uma vez, é na boa literatura que encontraremos as melhores descrições da experiência. Dentre muitos exemplos possíveis, ocorre-me aquilo que, em O Homem que Amava os Cachorros, o cubano Leonardo Padura escreve sobre a desilusão com o comunismo e a consequente redescoberta da caridade cristã: “Lendo e escrevendo sobre como a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance da mão fora pervertida, mergulhando nas catacumbas de uma história que mais parecia um castigo divino que obra de homens ébrios de poder, de ânsias de controle e de pretensões de transcendência histórica, tinha aprendido que a verdadeira grandeza humana está na prática da bondade incondicional, na capacidade de dar aos que nada têm não o que nos sobra, mas uma parte do pouco que temos. Dar até doer, e não fazer política nem pretender prerrogativas com essa ação, muito menos praticar a enganosa filosofia de obrigar os outros a aceitar nossos conceitos do bem e da verdade por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e por, além disso, deverem estar agradecidos pelo que lhes demos, mesmo que não o tivessem pedido”.

Dar até doer – que bela definição de amor ao próximo. E sim, se falamos abertamente aqui em caridade cristã, é porque Padura, Proust e Dickens (e Dostoievski, e Blake, e Shakespeare etc.), cada qual à sua maneira, e mais ou menos explicitamente, repercutem a Bíblia, o “Grande Código” da literatura ocidental, como a chama o crítico literário Northrop Frye. Celebram em prosa e verso, esses grandes escritores, o espírito do Natal, festa que marca precisamente o momento em que o amor ao próximo (inclusive aos que nos são mais intoleráveis: os inimigos) encarna na história. Foi justo para ensinar aos homens esse amor tão difícil e paradoxal que, contrariando a antiga tradição de todos os “deuses” pretéritos, Deus resolve tornar-se Ele mesmo o próximo. Como escreve G. K. Chesterton em O Homem Eterno: “Onipotência e impotência, ou divindade e infância, criam definitivamente uma espécie de epigrama que um milhão de repetições não consegue transformar numa banalidade. Não é nenhum exagero chamá-lo de único. Belém é decididamente um lugar onde os extremos se encontram… Cristo não apenas nasceu pondo-se no mesmo nível do mundo, mas até mesmo abaixo dele. O primeiro ato do drama divino foi representado não apenas num palco que não foi montado num nível acima do espectador, mas sim num palco escuro, fechado e afundado fora do alcance dos olhos; e essa é uma ideia muito difícil de expressar na maioria das modalidades de expressão artística… No enigma de Belém, era o céu que estava embaixo da terra”.

Se, tal como nos ensinaram os grandes mestres da palavra, a caridade verdadeira exige uma renúncia ao autointeresse, e sobretudo ao orgulho, não há gesto menos autointeressado e contrário ao orgulho do que a kenosis – o autoesvaziamento do Deus único que, por amor à sua criatura decaída, decide padecer como ela neste vale de lágrimas. Ali naquele humilíssimo estábulo em Belém, no qual a jovem Maria deu à luz o Nosso Senhor Jesus Cristo (criança entre crianças, frágil entre frágeis, desamparado entre desamparados), acha-se a única chave para o mistério da disponibilidade cristã. Esta não pode brotar verdadeiramente num coração orgulhoso e autossatisfeito, como o dos filantropos telescópicos, mas apenas, como versou o poeta, num coração partido pelo contato direto com o próximo. Com isso, desejo aos leitores da Gazeta do Povo um Feliz Natal!

“Ah! happy day they whose hearts can break
And peace of pardon win!
How else may man make straight his plan
And cleanse his soul from Sin?
How else but through a broken heart
May Lord Christ enter in?”

(Oscar Wilde, The Ballad of Reading Gaol)

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