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“Eles me odiaram sem razão” (Salmos 35,19)

“Quando la masa actúa por sí misma, lo hace sólo de una manera, porque no tiene otra: lincha” (Ortega y Gasset)

É quase uma fábula contemporânea, com personagens inusitados. Contrariando uma certa cultura de covardia e acomodação bem típica do show business brasileiro (onde, como diz a canção composta por quem sentiu na pele essa verdade, “irmão desconhece irmão”), a funkeira Valesca Popozuda protagonizou um ato de hombridade ao fazer aquilo que, em circunstâncias socialmente normais, seria banal: encontrar-se com um amigo – no caso, o maquiador Agustin Fernandez, que ficou famoso nas redes sociais por ser gay e fã declarado de Jair Bolsonaro.

Para Valesca, o simples contato com uma figura tida por pária pelo poderoso lobby LGBT (que, gosto sempre de frisar, nada tem a ver com orientação sexual, mas com orientação político-partidária) representou um risco para sua carreira e reputação. Imediatamente, ela foi alvo de uma dessas campanhas de linchamento virtual muito em voga hoje em dia, sempre atiçadas pela imprensa lacradora e prafrentex, que não perde a chance de impor na marra a sua agenda ideológica. Aproveitando a malhação da judas, e num gesto de retaliação, uma boate de Campinas em que a cantora faria um show decidiu cancelar a sua participação. Valesca estava socialmente contaminada.

Embora aceitando pagar o necessário pedágio ideológico para se limpar do estigma e sobreviver artisticamente no país (pedágio que consiste em se declarar contrário a Bolsonaro e repetir a senha identitária da tribo “progressista”: Ele não!), em alguma medida a funkeira resistiu à pressão, mantendo-se ao lado do amigo politicamente contagioso e recusando entregá-lo de bandeja à turba de linchadores “do bem”. Nesse sentido, provavelmente sem o saber, seguiu à risca uma ética cristã, cuja singularidade, como mostrou brilhantemente René Girard, consiste em recusar e denunciar o mecanismo do bode expiatório – a transformação da violência social generalizada em violência canalizada da coletividade contra um só indivíduo, do todos contra todos em todos contra um. Como escreve o autor em Eu Via Satanás Cair do Céu como um Relâmpago: “Quando os grupos humanos se dividem e se fragmentam, acontece frequentemente, após um período de mal-estar e conflitos, que eles se reconciliem à custa de uma vítima, sobre a qual os observadores constatam sem dificuldade, caso eles não pertençam ao grupo perseguidor, que ela realmente não é responsável por aquilo de que é acusada. No entanto, o grupo acusador considera essa vítima culpada, devido a um contágio análogo ao dos fenômenos ritualizados”.

Para reforçar seu argumento, Girard leva às últimas consequências uma comparação esdrúxula, mas relativamente cool nos meios intelectuais do Ocidente, entre as figuras de Jesus de Nazaré e Apolônio de Tiana, místico pagão do século 2 d.C., e que alguns pensadores anticristãos (dentre eles Voltaire) acreditaram ter inspirado a criação da personagem (para eles, evidentemente, fictícia) de Cristo. Depois de reconhecer uma semelhança de matéria prima narrativa entre os Evangelhos e a mitologia pagã, Girard enfatiza a diferença crucial de sentido trazida ao mundo pelo texto cristão. Aponta, como ilustração, a inversão quase simétrica entre o episódio da mulher adúltera (salva da lapidação por intermédio de Jesus) e os pretensos milagres realizados por Apolônio, que, dentre outros feitos notáveis, teria livrado a cidade de Éfeso de uma epidemia de peste, episódio registrado na obra Vida de Apolônio de Tiana, do sofista Flávio Filóstrato (170 d.C. – 250 d.C.).

Filóstrato conta que, incapazes de se livrar da terrível epidemia, os efésios recorreram desesperadamente a Apolônio, cuja fama se espalhara por toda a Ásia Menor. Por meios sobrenaturais, o guru visitou cada lar da cidade, anunciando os procedimentos requeridos para a cura imediata. Feito isso, convidou toda a população ao anfiteatro, no instante em que por ali perambulava um mendigo vestido em farrapos, que piscava os olhos como se fosse cego e trazia na bolsa uma bolorenta côdea de pão. Segundo o relato, a mera visão de tão andrajosa figura provocava imediata repugnância. Dispondo, então, os efésios em volta do mendigo, Apolônio dirigiu-lhes esta exortação: “Apanhem tantas pedras quanto possam e atirem-nas nesse inimigo dos deuses”.

Escandalizada com a ideia de apedrejar um pobre miserável, que, ademais de não lhes ter feito mal algum, ainda suplicava por piedade, a população mostrou-se reticente. No entanto, em face da insistência obstinada do guru, alguns homens começam timidamente a atirar uma ou outra pedra. Ato contínuo, narra Filóstrato, o mendigo lança-lhes um olhar penetrante, “revelando olhos cheios de fogo”. Os efésios compreendem, então, tratar-se de um demônio, e passam a apedrejá-lo com tamanha vontade que as pedras formam um grande túmulo à volta de seu corpo.

Após um breve momento, Apolônio pede-lhes que retirem as pedras a fim de conferir a besta selvagem que acabaram de matar. Imediatamente, os efésios constatam que não fora um mendigo que haviam lapidado até a morte, mas um animal com a aparência de um cão molosso, só que do tamanho de um leão. “Reduzido a papas” pelas pedras, a fera vomitava espuma como os cães enraivecidos. Mais tarde, no local exato onde o mau espírito fora expulso, ergueu-se uma estátua de Héracles, o deus protetor.

Segundo Girard, o “horrível milagre” de Apolônio consistiu em desencadear violentamente o mecanismo do bode expiatório, polarizando toda a população de Éfeso contra o infeliz mendigo. Depois de alguma hesitação inicial, os efésios começam a apedrejar a vítima com tamanha violência que acabam vendo nela aquilo que o guru lhes induz a ver: o demônio da peste, responsável pelo grande mal que assola a cidade. A coletividade homicida não podia estar errada. A vítima não podia ser inocente. Num processo catártico, quanto mais os efésios obedecem ao acusador, mais se convertem numa multidão histérica, descarregando na pobre vítima uma torrente de temores, ódios e frustrações acumulados, depois do que se descobrem curados da epidemia.

Girard chama a atenção para a diferença crucial entre os comportamentos de Apolônio e Jesus Cristo diante do fenômeno da violência contagiosa, aliás, exatamente a mesma violência: o apedrejamento. Enquanto o primeiro a incita, o segundo a desencoraja. À diferença dos efésios – que, de início, se mostram pacíficos e contrários ao apedrejamento –, a multidão que conduz a mulher adúltera até Jesus está raivosa e inflamada. Em ambos os textos, diz Girard, a ação gira em torno de um problema que apenas a frase de Jesus torna explícito, enquanto que, ao contrário, nunca é claramente formulado na narrativa de Filóstrato: a primeira pedra.

No “milagre” de Éfeso, a primeira pedra é a grande dificuldade enfrentada pelo acusador, uma vez que a população reluta em iniciar o apedrejamento. Parecendo estar consciente do poder da violência contagiosa ou mimética, Apolônio sabe que, depois de atirada a primeira, as outras pedras virão com maior facilidade. Como é a mais difícil de ser lançada – porque, segundo Girard, é a única que não tem um modelo –, Apolônio procura esvaziar-lhe o significado, desviando o foco do brutal ato físico prestes a ser cometido para a suposta culpabilidade da vítima. “É inimigo dos deuses” – diz ele com hiperbólica e calculada grandiloquência, conquistando o seu objetivo maior: a primeira pedra.

Quando, graças ao encorajamento de Apolônio, a primeira pedra é lançada, a segunda vem de imediato, seguindo o exemplo da primeira; a terceira, por sua vez, vem ainda mais rapidamente, contando agora com dois modelos, e assim sucessivamente. “À medida que os modelos se multiplicam” – escreve Girard –, “o ritmo do apedrejamento acelera”.

Ao contrário de Apolônio, Jesus menciona explicitamente a primeira pedra, pondo nela toda a gravidade devida, e deixando que suas palavras pairem como espectros por sobre as consciências: “Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra” – palavras cujo poder consiste em fazer recair sobre quem pretenda iniciar o apedrejamento todo o peso da responsabilidade.

Quando Jesus as profere, a primeira pedra é o último obstáculo que se antepõe entre a mulher e os seus virtuais apedrejadores, cujos espíritos já se revelavam tomados por furor homicida. Ao chamar a atenção para a primeira pedra, Ele faz o possível para reforçar e magnificar esse obstáculo. O raciocínio é que, quanto mais os que cogitam lançar a primeira pedra se derem conta da responsabilidade que assumem ao fazê-lo, mais chances há de que venham a desistir do ato. Dito e feito: com o alerta solene ainda ressoando, as pedras vão uma a uma caindo das mãos já pouco convictas, até que, finalmente, a lapidação é abortada.

Enquanto Apolônio procura suscitar, ao mesmo tempo que ocultar, o mecanismo acusatório – desviando a atenção da gravidade do apedrejamento para a culpabilidade da vítima –, Jesus faz o exato oposto. Chamando a atenção para a terrível responsabilidade do primeiro apedrejador, retira o foco da vítima, assim revelando a irracionalidade da violência mimética. Se Apolônio procura convencer os efésios de que a vítima é radicalmente diferente deles (ela é um “demônio”), Jesus mostra que, ao contrário, a vítima é essencialmente igual aos seus algozes, pecadores como ela. Apolônio procura diluir a responsabilidade pelo apedrejamento na coletividade homicida, ao passo que Jesus procura chamar cada um, individualmente, à responsabilidade.

A história mostra o quão difícil é seguir o exemplo de Jesus e resistir à tentação de se afastar do bode expiatório, somar-se à coletividade linchadora e contribuir com uma pedrinha na catarse dos falsos milagres de cura social. Quando o próprio Cristo se tornou a vítima por excelência da violência mimética e contagiosa, num primeiro momento nem mesmo os seus discípulos mais próximos (a exemplo de Pedro) ficaram ao seu lado. É somente após a ressurreição que os discípulos formam uma minoria distinta e apartada da massa perseguidora e ilusoriamente redimida pelo sacrifício da vítima expiatória. Como escreve Girard: “os Evangelhos revelam a verdade plena, inteira, sobre a gênese dos mitos, sobre o poder de ilusão dos arrebatamentos miméticos, sobre tudo que os mitos necessariamente não revelam, pois estão sempre dominados pelo engano”. Ao se recusar a entregar o amigo bolsonarista em sacrifício no altar do politicamente correto, é à tradição cristã de defesa das vítimas das turbas linchadoras que – seja por vontade consciente, seja por inspiração da graça – a funkeira se vincula inexoravelmente. Deus escreve certo por linhas curvas…

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