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O filósofo Olavo de Carvalho. Foto: Arquivo/Gazeta do Povo
O filósofo Olavo de Carvalho. Foto: Arquivo/Gazeta do Povo| Foto:

“Em grande parte devemos a ele [Olavo de Carvalho] a revolução que estamos vivendo”, disse o presidente Jair Bolsonaro em seu discurso durante um jantar na casa do embaixador brasileiro em Washington no último dia 17, tendo o filósofo sentado ao seu lado direito. Nesse mesmo jantar, o ministro Paulo Guedes disse à Olavo: “Você é o líder da revolução”. Se as palavras continuam significando literalmente o que significam, então Olavo de Carvalho está oficialmente reconhecido como “líder da revolução”.

Embora essas falas tenham sido muito repercutidas, pouco vi quem destacasse os dois fatos mais significativos e que exigem melhor esclarecimento, análise, debate etc. Primeiro, de que revolução estão falando, um termo muito pouco utilizado até então para classificar esta “nova era”? Segundo, independentemente de cargo e indicações e das confusões inúmeras nas últimas semanas envolvendo Olavo de Carvalho e figuras do governo, como o vice-presidente, com tamanho reconhecimento não se trata mais de saber qual seria a influência do filósofo no governo, algo ridículo de ser negado ou diminuído agora, mas qual a extensão da sua liderança.Começo pelo segundo ponto.

Olavo de Carvalho, dentre outras coisas, é responsável por um dos maiores vexames do jornalismo brasileiro. Meses atrás escrevi uma série de colunas rascunhando a história do surgimento da chamada nova direita, seja lá o que isso for, por várias vezes apontando a presença constante, inegável e decisiva de Olavo de Carvalho desde os anos 1990, quando já era um autor best seller. Apesar disso, durante todo esse tempo, o filósofo quase nunca mereceu atenção da imprensa ou dos intelectuais. Só deixou de ser ignorado com a vitória de Bolsonaro. Só esse fato já basta para termos um vexame sem tamanho: como puderam ignorar o “líder da revolução” durante décadas, alguém que atuou na mídia, sempre vendeu muitos livros e nunca deixou de ser “barulhento” o suficiente para deixar de ser notado?

Mas se já era um vexame a ignorância, voluntária ou não, a atenção repentina dada não tem redimido o jornalismo. Enfim tem saído uma série de entrevistas, reportagens ou matérias sobre o filósofo, mas quase nada se aproveita senão como documento histórico de um estado de indigência jornalística impressionante. Entrevistadores que só conhecem do filósofo seus posts de rede social, com reportagens e matérias focadas unicamente em transformá-lo ou reduzi-lo à “guru”, “chefe de seita”, “astrólogo” e “autoproclamado filósofo que não possui diploma”. Seria risível se não fosse trágico.

Entre ignorar o que era impossível de ignorar e essa fantasia inventada para, no fundo, continuar ignorando, a consequência é que quem se informa pela imprensa não fica conhecendo nada ou muito pouco sobre o filósofo. Melhor fará se ler um livro seu, unzinho só. Eu sugiro A Filosofia e Seu Inverso. Não precisará de muitas páginas para constatar o abismo que há entre a imagem fabricada e aquela que surge a partir da leitura de suas obras. Também começará a entender por que ignorar parece ter sido “a melhor” estratégia de seus adversários e inimigos.

Porque desde quando irrompeu no debate público na imprensa nos anos 1990 a mesma reação de agora aconteceu. Enquanto no Jornal do Brasil o filósofo debatia com não sei quantas primas donas da época fazendo um julgamento moral da intelectualidade reinante que resultaria no best seller O Imbecil Coletivo, em O Globo desafiava ao debate os críticos de sua obra Uma Filosofia Aristotélica da Cultura. Em ambos os casos a indigência intelectual da classe jornalista e também de sumidades acadêmicas era exposta nua e crua à opinião pública, forçando uma assustada reação corporativa que atacava a pessoa do filósofo, mas era incapaz de enfrentar o conteúdo do que ele dizia, conforme consta do prólogo à obra Aristóteles em Nova Perspectiva: “o mais curioso foi que meus oponentes, pródigos em opiniões sobre a pessoa de um autor que nunca tinham visto mais gordo nem viram depois da dieta, não fossem capazes de dizer uma só palavra sobre o conteúdo da tese aqui defendida”.

Mais de 20 anos depois, pouco mudou. Faça a experiência, meu caro leitor, de tentar encontrar resenhas ou críticas aos livros de Olavo de Carvalho pela imprensa. Tenho certeza de que contará nos dedos quantas há, mas se for analisar a qualidade, provavelmente encontrará apenas uma que merece leitura atenta e análise cuidadosa. Trata-se do longo ensaio de Martim Vasques da Cunha publicado recentemente nesta Gazeta do Povo, intitulado O mínimo que você precisa saber sobre o pensamento de Olavo de Carvalho.

Só por ter mais de 50 páginas analisando vários textos seminais do filósofo, tentando extrair seu filosofema e realizando uma crítica, certa ou não, prova o erro monstruoso em que incorre a imensa maioria dos que desprezam Olavo de Carvalho sem enfrentar sua obra e achando que posts de suas redes sociais “bastariam” para conhecê-lo. É óbvio que há uma distância imensa entre o que Martim fez em seu ensaio e o que vem sendo publicado pela imprensa sobre o filósofo, assim como é igualmente óbvio que seu texto seria usado, como está sendo, para supostamente “provar” as acusações mais toscas e corriqueiras contra Olavo, e ainda como se fosse a refutação cabal de seu pensamento. Ainda que o título do ensaio seja “o mínimo”, não faltam indigentes intelectuais para considerá-lo o máximo ou o suficiente.

Não tratarei do conteúdo do ensaio de Martim neste momento, até porque sua leitura exige uma série de releituras de escritos do filósofo e de outros para uma análise suficiente do argumento nele sustentado, apenas destacarei um ponto que me parece urgente diante do reconhecimento da liderança de Olavo dessa chamada revolução. Embora Martim seja conclusivo a esse respeito, tomo aqui sua certeza como possibilidade futura, como um risco real de vir a acontecer “a tragédia do filósofo que se envolve com as artes da política”.

Ao que parece, a comunicação do “líder da revolução” não apenas com o público em geral, mas com o próprio governo, tem se dado somente de forma direta através de seus perfis nas redes sociais, como vinha fazendo desde sempre. A diferença agora é de grau de responsabilidade. Uma coisa é ser “Apenas um véio lôco. Lôco o bastante para ser sincero”, conforme consta da apresentação de seu perfil no Facebook. Outra, por óbvio, é ser o “líder da revolução”, com ministros indicados e alunos seus em várias áreas do governo. A partir daí, quem “veio para foder com tudo”, como ele próprio constantemente repete, tem também a responsabilidade, senão de construir algo, ao menos de liderar de fato o processo. Como articular essa relação alquímica de ser o enxofre dissolvente e o sal cristalizador da “nova era”? Eis o atual desafio de Olavo de Carvalho, ao menos no meu entender.

E talvez esteja aí, na sua atuação nas redes sociais, o risco maior para si e por consequência aos seus liderados, que somos todos nós, gostemos ou não. Como, pela própria natureza das redes sociais, as postagens quase sempre são curtas, sintéticas, com afirmativas carecendo de descompactação e desdobramentos explicativos, liderar a partir disso já seria naturalmente algo difícil. Some-se a isso um investimento de tempo considerável, com inúmeras postagens diárias sobre vários assuntos, sem uma ordem clara, em um estilo pessoal recheado de hipérboles e o hábito de reação de atirar antes de perguntar, para se constatar que a comunicação se torna também muito impetuosa, fragmentada e até desorientadora.

Não à toa o ministro Paulo Guedes chamou Olavo de “líder da revolução” num contexto de questionamento sobre o que o filósofo queria dizer com uma de suas postagens sobre o risco do governo terminar em seis meses. Nesse caso a declaração foi recortada pela imprensa e não divulgada em sua íntegra, o que causou a confusão, mas exemplos de dúvida ou mesmo contradição causadas por postagens diversas do filósofo não faltam, como por exemplo na mais recente crise no MEC, quando Olavo postou pedindo aos seus alunos que saíssem do governo para dias depois comemorar que quem saiu foram os adversários deles. Ou quando afirmou que não teria influência nenhuma no mesmo MEC ou no governo como um todo, para em outro momento postar uma mesma imagem contendo a notícia de que o vice-presidente duvidaria de sua influência no governo, acompanhada de outra com a fala de Paulo Guedes o chamando de “líder da revolução”.

Além disso, há o aumento de responsabilidade. Por exemplo, nos últimos dias, tem postado com insistência, sugerindo que o presidente faça pronunciamentos semanais em rede nacional de TV, pois seria a única forma de combater a oposição cerrada que a grande imprensa estaria lhe fazendo. Se o Presidente fizer isso, prova-se mais uma vez quão influente o filósofo é, mas não-somente. Haverá aí liderança ainda maior, com consequente aumento de sua responsabilidade pelo que posta em suas redes sociais. Por consequência, a quantidade de ruídos na comunicação e de mal entendidos que já são inúmeros tendem a não só crescer como pode se tornar um problema grave para o próprio governo.

Até onde irá a extensão da liderança de Olavo não há como saber ainda. Mas caso siga crescente como vem sendo e no fim das contas não seja bem sucedido, seja por qual razão for, pergunto-me o quanto sobreviveria do filósofo em caso de naufrágio do “líder da revolução”. Talvez a sua reação ao ensaio de Martim Vasques deva servir de alerta ao filósofo, pois agiu exatamente como os jornalistas fizeram contra seu escrito sobre Aristóteles lá nos distantes anos 90, não dizendo “uma só palavra sobre o conteúdo da tese” defendida no ensaio, preferindo atacar a pessoa do autor e um de seus livros, A Poeira da Glória, que agora diz não poder ser levado a sério nem por um minuto, embora na aula 323, do seu Curso Online de Filosofia, dada em 16 de janeiro de 2016, ao ser perguntado justamente sobre o que achou dessa obra, respondeu: “Eu acho um livro excelente e importante”.

Olavo costuma citar com frequência os versos de Antônio Machado: “Cuan dificil es cuando todo baja no bajar también.” Espero tenha sido uma reação de momento e que Olavo uma hora responda ao conteúdo deste ensaio como o filósofo que é. Do contrário, reações assim não apenas o rebaixam, como também servem muito mais em favor da conclusão de Martim do que como sua refutação, o que nos devolve à primeira pergunta que fiz no início, sobre qual seria a “revolução” citada nas falas do presidente e do ministro Paulo Guedes. Este adjetivou de liberal esta revolução, mas é nítido que o liberalismo é um dos componentes do que está em curso, não a forma do todo.

Seria uma revolução diferente daquelas que o próprio filósofo esclareceu em vários de seus escritos? Como na apostila do seu Seminário de Filosofia, intitulada Ser e Poder: “as revoluções sociais só aparentemente são repentinas, antes sendo processos altamente complexos e demorados, e só quando irrompem parecem auspiciosos, mas logo vira uma coisa macabra, mesmo para muitos dos seus entusiastas, que acabam por ser massacrados. Por mais erradas que sejam estas analogias, a palavra ‘revolução’ continua a ser usada com um sentido positivo até mesmo pelos seus adversários”.

É evidente o sentido positivo do uso do termo “revolução” pelo Presidente e o ministro. Nesse caso, estaríamos vivendo um processo revolucionário como o da Revolução das Rosas, ocorrida na Geórgia em 2003? Ou a da Ucrânia, em 2014? Em que medida está sendo evitado o risco dessa revolução resultar em uma “coisa macabra”? Não creio que alguém tenha respostas no momento, apenas apostas e palpites. Seja como for, se já não era pouca a responsabilidade de Olavo de Carvalho, agora, então, vai se tornando cada vez maior. Que Deus o abençoe e proteja, pelo bem de todos nós.

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