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Evaristo Sá/AFP
Evaristo Sá/AFP| Foto:

A direita chegou onde parecia impensável há meses atrás, conquistando não apenas a Presidência da República como boa parte dos assentos no Congresso Nacional. O grande temor de um eventual governo Bolsonaro que seria não ter apoio parlamentar já havia se desfeito com os resultados do primeiro turno e a tendência é que consiga ampla maioria já no seu início de mandato, o que era ainda mais impensável. Os riscos, então, passam a ser outros e um deles merece destaque desde já, que é o risco da “democracia do like”, como chamou o recém-eleito deputado federal pelo Paraná, Paulo Eduardo Martins. Dois fatos recentes creio que ajudam a começarmos a ter noção do que se trata.

O primeiro, a candidatura de Kim Kataguiri à presidente da Câmara dos Deputados lançada quando o primeiro turno mal havia terminado. O jovem líder do MBL eleito deputado federal aos 22 anos por São Paulo espantou muita gente, afinal, a eleição mal tinha acabado, é um novato, é muito jovem, a Constituição em tese impediria sua candidatura pela idade e não se lançou com apoio do próprio partido. Em entrevista recente, assim justificou sua iniciativa solitária: “Estou trabalhando para vencer e não só para marcar posição, fazer discurso. Tem de haver debate para que a população saiba o que cada um pretende fazer. Sempre foi uma coisa muito obscura a eleição da presidência da Câmara, muito de gabinete e pouco ligada à população”.

O segundo fato, muito comentado nesta semana, foi a publicação em rede social da deputada estadual catarinense recém-eleita, Ana Carolina Campagnolo, depois da vitória de Jair Bolsonaro, pedindo aos estudantes daquele estado que denunciassem os professores que, em consequência do resultado, estariam inconformados e fariam da sala-de-aula “uma audiência cativa para suas queixas partidárias”. Pediu que filmassem e enviassem os vídeos, garantindo o anonimato dos denunciantes. O Ministério Público estadual entrou com ação contra a nova deputada alegando que ela teria criado um “serviço ilegal de controle político-ideológico da atividade docente”.

Não me interessa aqui o mérito das iniciativas, se estão certas, se estão erradas, importa-me a ânsia pelo protagonismo que ambas as iniciativas revelam e têm em comum. Contextualizadas no processo eleitoral em que pela primeira vez muitos foram eleitos por sua atuação em redes sociais, como é o caso dos dois deputados, é preciso compreender que não se trata apenas de buscar protagonismo político tal como sempre existiu, existirá e não tem nada de errado nisso, mas de um protagonismo típico de redes sociais que fatalmente passará a fazer parte dos parlamentos brasileiros a partir de agora. Isso é bom ou ruim?

Voltemos à iniciativa de Kim Kataguiri, cuja finalidade explicitada por ele próprio pouco tem a ver com vencer a eleição futura ou marcar posição, mas modificar a forma como se dão os debates e decisões parlamentares. Ao acusar de obscuridade a eleição da presidência da Câmara e de inexistir debates para tanto entre os deputados-candidatos, o que Kim está a reclamar, na realidade, é da forma como essa eleição acontece e intenta modificá-la levando-a para mais perto, senão para “dentro”, das redes sociais, onde realiza praticamente toda sua comunicação com os eleitores. Se por um lado isso pode significar uma abertura e transparência maior das casas legislativas, por outro lado há o risco de criação da “democracia do like”.

O deputado Paulo Eduardo Martins também mantém forte atuação em redes sociais e por isso não teria motivos para ser crítico de algo que em tese mais o beneficiaria, mas em entrevista recente disse ver com preocupação movimentos assim que podem “desencadear uma corrida populista, a caça do like. Pode ser o ‘Congresso do Like’, a ‘democracia do like’, e que é certamente autofágica e, obviamente, autodestrutiva. A busca pelo like, a busca por aparecer de qualquer maneira, ela torna acordos impossíveis, ela torna convivências inviáveis, você pode causar movimentos impulsivos que causam danos irreversíveis. Então, estou um tanto apreensivo quanto a isso porque me parece que a maneira com que são estruturadas nossas eleições, nosso sistema proporcional, é incompatível com essa alta democratização de mídias de massa.” A entrevista inteira mereceria ser transcrita aqui, mas vale mais assisti-la na íntegra:

Quando na sequência do trecho transcrito acima Martins contextualiza historicamente a presença de comunicadores de massa nos parlamentos, oriundos dos canais de TV, rádio e jornais, não poderia ser mais feliz ao dizer que o que antes era uma parte pequena do parlamento agora pode se tornar a maior, com todos e cada um buscando para si “a sua rede Globo. Então corre-se o risco de falar o tempo inteiro para sua própria platéia, quando o Congresso é uma casa de conciliação, é o país reunindo seus representantes e este país tem de se conciliar para aprovar uma lei que é imposta a todos. (…) quem não tem esses canais tentará desenvolver e será uma democracia apenas disto. E aí, sim, nós podemos ter uma composição congressual totalmente populista, no mau sentido.”

Não estou a afirmar ou insinuar que os deputados citados acima estão agindo de forma populista. De novo, não entro no mérito de suas ações e até onde conheço de ambos é suficiente para acreditar que estão tentando fazer o que acreditam ser o melhor para o país, mas é preciso apenas destacar o risco já existente que muitos desses movimentos acabem sendo inúteis para atingir os objetivos a que se propõem e apenas rendendo audiência nas redes sociais. Aí começa o risco de se criar a “democracia do like” porque como o lúcido deputado Paulo Martins afirmou: “Se você não tem esse compromisso ético de buscar o melhor você vai ser traído pela lógica de sobrevivência do político. (…) Pelo instinto de sobrevivência de ser popular, o sujeito começa a fazer a postura parlamentar para fora do parlamento. Você irá destruir o parlamento. Você pode ter aquela situação em que se reúne numa sala para se fazer um acordo para se aprovar uma lei, uma medida provisória, e o sujeito sair da sala e dizer ‘estão tentando fazer uma sacanagem aqui’, queimando todo mundo para sair como herói, para ter like, para ‘mitar’. É uma postura que não ajuda e só desmoraliza o parlamento como instituição.”

Não serão poucos os desafios da nova direita parlamentar, mas talvez nenhum seja maior do que este, de não se deixar trair pela tentação sempre presente de “lacrar” ou “mitar” e com isso criando essa “democracia do like”, que até pode ter muitas curtidas virtuais, mas nenhum compartilhamento real.

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