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Reprodução/Brasil Paralelo
Reprodução/Brasil Paralelo| Foto:

Estava pensando aqui numa coisa, veja se não concorda comigo, leitor pensativo. Dizem que a Idade das Trevas foi a Média. Mas se você tomar o adjetivo no sentido de “ficar no escuro”, ou seja, sem saber direito o que se passa e sendo obrigado a tatear para se orientar, aí periga a Idade das Trevas ser a nossa!

No mínimo, desde a Guerra Fria estamos no escuro, afinal, muito do que aconteceu a partir dali, e certamente o essencial, se passou “nas sombras”, com toda sorte de ações de espionagem e desinformação fabricando fatos e construindo narrativas consequentes replicadas à exaustão com a finalidade de conquista e manutenção do poder. Como até hoje muitos arquivos dos serviços secretos, sejam americanos, russos ou de outros países, continuam secretos, como ter segurança, ou ao menos uma probabilidade razoável, de que o que sabemos aconteceu mesmo da forma como a história vem sendo contada?

É mais do que verossímil que o que ainda não foi divulgado seja o mais importante para conhecermos e compreendermos o que se passou. Pegue, por exemplo, as revoluções, golpes e ditaduras latino-americanas ocorridas a partir dessa época, como as cubana, chilena e brasileira. É evidente que só podem ser compreendidas neste contexto geopolítico mundial, com EUA e URSS aparecendo como agentes decisivos, ainda que nos bastidores. E o que sabemos sobre essas atuações no Brasil?

Durante décadas a história que nos vêm sendo contada nas escolas e na mídia, conta sempre com a proximidade, a ingerência americana via CIA. No ano passado mesmo, foram divulgados novos documentos que indicam que essa ingerência na época da ditadura foi maior do que a desconfiada. Ainda é muito pouco, contudo, insuficiente para sabermos com exatidão a extensão da ingerência americana, o que é explicável, pois ao contrário da URSS, cujo fim levou à abertura de muitos de seus arquivos secretos, os EUA são os mesmos daquela época, mantendo muitas informações resguardadas.

Mas e a ingerência soviética, comunista? Não é apenas inverossímil acreditar que a URSS nada fez, é simplesmente impossível que não tenha feito diante do fato de sua imensa presença em Cuba e constantes conexões com os comunistas brasileiros. No entanto, a história nos é contada como se isso não tivesse existido, ou foi de tão menor importância que sequer merece maior atenção, o que é inadmissível.

É tão absurda a aparente falta de interesse de historiadores e jornalistas pela atuação soviética no país que fica difícil não considerá-la proposital, afinal, boa parte dos arquivos da KGB estão abertos desde a década de 1990. Ainda que possa haver aqui e acolá um ou outro que tenha feito alguma pesquisa, compare com a quantidade de livros e reportagens feitas sobre a relação da CIA com a ditadura militar e se pergunte: por quê?

Essa pergunta se tornou ainda mais necessária, e incômoda, nesta semana, diante do conteúdo e da reação que está havendo contra o documentário 1964 – O Brasil entre armas e livros, produzido pelo Brasil Paralelo, com pré-estréia nos cinemas e disponível gratuitamente, e na íntegra, no YouTube, e que vem sofrendo uma série de boicotes e tentativas de censura, sem sequer ter sido assistido. Por quê?

Talvez porque conte a história incluindo parte do que consta dos arquivos secretos da STB, polícia secreta tcheca, que prova definitivamente que os comunistas atuaram por aqui tanto ou mais do que os americanos. Quem o assiste, além de encontrar uma obra muito bem feita, com ótimo roteiro, bom ritmo e uma trilha sonora certeira, terá provavelmente pela primeira vez na vida, apresentada de maneira didática e imagética, uma perspectiva narrativa quase inédita e suficiente da nossa história depois da era Getúlio Vargas até o momento atual.

Como o alcance do documentário no YouTube está sendo impressionante, pois em dois dias já consta com mais de 3 milhões de visualizações, já é possível afirmar que, a partir de agora, a história contada na escola e na imprensa sobre o Golpe de 64 e a ditadura que se lhe seguiu já não é mais História, mas uma das narrativas possíveis dessa história. Como a trazida no documentário também não pode ser admitida como definitiva. Não apenas porque há muito ainda por se conhecer desses arquivos secretos, mas também porque a própria narrativa tem ao menos uma falha que não pode ser ignorada.

Infelizmente, ao tratar da atuação americana no país, o documentário erra. É compreensível, diante do alcance temporal da história contada e do foco no que não se costuma contar. Ainda assim, no breve trecho em que se faz uma comparação entre a atuação da CIA e dos comunistas, empurra-se a narrativa de que a atuação americana teria sido mínima, quase inexistente, por isso irrelevante, o que não é verdade. Há vários documentos da própria CIA, inclusive áudios de grandes autoridades americanas, até presidentes, revelando que existia proximidade e influência suficiente durante a ditadura militar para não ser diminuída da forma como foi no documentário.

Será que se juntássemos as narrativas desses Brasis Paralelos teríamos a verdade dos fatos ocorridos? Não, ainda não. O máximo que podemos fazer é tatear em torno à verdade através dessas narrativas, comparando e confrontando-as com base nos documentos e provas que têm a apresentar, não com suas intenções, seja lá quais forem. Já é muito, inclusive, esperar que haja diálogo e debate entre essas perspectivas. Isso é impossível quando ainda se acha legítimo tentar boicotar e censurar a liberdade de expressá-las. Viu, meu amigo, como estamos mesmo vivendo em uma idade das trevas?

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