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Foto: Raysa Leite/AFP
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Sob certo ponto de vista, a atividade política pode ser resumida da seguinte maneira: a arte de conduzir disputas e interesses antagônicos baseada no princípio de respeito e abertura à pluralidade de crenças e modos de vida. A pluralidade deve ser assegurada por instituições com regras claras, objetivas, impessoais e sólidas orientadas pelo princípio de isonomia, dignidade, liberdade e racionalidade.

Cada indivíduo tem uma ideia mais menos correta e não dogmática a respeito do que é melhor para si e para os outros, goza de autonomia e responsabilidade para conduzir a própria vida e sabe que sua liberdade jamais poderá violar o direito de terceiros conduzirem suas próprias vidas como quiserem. A fim de equilibrar a balança da ordem política, de quatro em quatro anos, eleições são convocadas para substituir o governo e evitar, assim, que determinados grupos se apropriem do Estado.

Olhando dessa maneira, a política tem, por meio de suas instituições consagradas democraticamente, os poderes subdivididos e operando dentro de limites constitucionais, a genuína finalidade de minimizar e reparar os possíveis conflitos que ocasionalmente ocorrem no interior desse espaço de convívio chamado sociedade civil; além disso, busca evitar o predomínio de determinados grupos no poder. Os conflitos sempre são vistos como desvios e precisam ser duramente rechaçados. Nessa paisagem moral da sociedade aberta, o Estado não pratica violência, mas garante segurança e alguns outros benefícios para o bem de todos.

Portanto, o ponto de partida dessa visão de mundo é o de que os indivíduos estão dispostos a criar uma série de redes de solidariedade a fim de, voluntariamente, ajudar uns aos outros. O Estado, concebido como a unidade política da sociedade, funciona como a instituição soberana capaz de garantir que tais direitos não sejam violados; e, caso sejam, seus agentes acumulam o conjunto de saberes suficientes e o controle dos mecanismos adequados para repará-los.

Três são os pilares dessa otimista — porém não vulgar — visão da ordem social: a autonomia dos indivíduos sem deixar de se considerar a vida comunitária, a racionalidade pública que une as pessoas em torno da busca por bem-estar como um propósito comum, e o incondicional respeito às diferenças. Os pilares desse “cosmos” estão fixados em um mesmo solo: o reconhecimento dos direitos fundamentais e universais dos seres humanos. Uma visão inspirada no ideal de que todos “poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade” — para usar uma frase não tão fora de contexto de Martin Luther King.

O filósofo alemão Jürgen Habermas, que ajudou a construir o edifício de uma ética das disputas públicas no espaço de uma sociedade democrática, excessivamente tecnológica e extremamente pluralista, acredita que há um elemento indestrutível e substancial na capacidade humana de comunicar e resolver seus conflitos sociais: a razão pública.

A razão pública, que rege o princípio motor da vida humana em sociedade e se expressa na ação comunicativa, valida nossas pretensões em quatro níveis elementares em um plano ideal: inteligibilidade, verdade, sinceridade e correção normativa.

Cada uma dessas pretensões normativas de validade exige dos seres racionais critérios objetivos e imparciais para que suas demandas possam ser atendidas. A ausência de quaisquer constrangimentos externos, o certificado de que nossas motivações não sejam determinadas por forças assimétricas e por aí vai. Não vamos negar, trata-se de um mundo pensado como “ideia”, pois refere-se a uma ideia de mundo. O tal do “país que nós desejamos”.

Olhando o jogo político por essa perspectiva, a facada no candidato Jair Bolsonaro deve ser definida como a ação antipolítica por excelência, um verdadeiro atentado que acerta no coração da ordem democrática.

Por outro lado, gostaria de trazer outra possibilidade de pensar a política. Pretendo mostrar — e não necessariamente defender — que, por essa perspectiva bem menos otimista e idealista, o atentado a Bolsonaro não é a negação, mas a encarnação da política. Ou seja: a política na sua forma pura e estado bruto.

Sem considerar a possibilidade de Adélio Bispo estar dissimulando (uma possibilidade que não pode ser descartada para o julgamento e a condenação dele), gostaria de analisar o sentido de uma de suas declarações dada na audiência de custódia. Ele afirmou: “Eu, como milhões de pessoas, pelo discurso da pessoa referida [Bolsonaro], me sinto ameaçado literalmente. Me sinto ameaçado como tantos milhões de pessoas pelos discursos que o cidadão [Bolsonaro] tem feito. Aquela certeza de que, cedo ou tarde, [ele] vai cumprir aquilo que está prometendo tão veementemente pelo país todo contra pessoas como eu exatamente”.

Se isolarmos a política de qualquer elemento normativo e ideal que não seja a política em estado puro, por exemplo, tirar os elementos éticos, econômicos, religiosos ou jurídico-normativos, o que sobra da política? Sem dúvida, o paradigma normativo dependente de elementos extrínsecos à política, uma vez que determina e valida a ordem política em uma ordem moral, legal ou até mesmo religiosa. Mas “o político” em sua forma isolada, sem tangenciar outras “ordens”, revela exatamente o quê? De Trasímaco a Carl Schmitt, de Maquiavel a Marx, de Nietzsche a Foucault, o político revelaria apenas isto: a taxativa autoafirmação do poder como relação de forças.

O núcleo duro do chamado “realismo político” é o conflito. Ou, para usar a distinção mais notória dessa perspectiva, elaborada principalmente pelo teórico alemão Carl Schmitt em O conceito de político: o político é o antagonismo amigo/inimigo. Do que se trata o político senão da decisão do grupo mais forte de impor ao mais fraco ordem e paz? Para além dos conflitos de natureza ideológica, para além de qualquer mediação institucional, a política é imposição pela força, pragmatismo. A forma política do Estado não é outra senão a soberania absoluta dessa decisão. Dois são os elementos chaves desse pensamento radical: existência e vida. O resto é frescura e fachada.

Em contraste com o clássico pensamento liberal, que pensa a comunidade política como neutralizada por normas fundamentais, universais e abstratas, o realismo político condensa um postulado decisionista. Isto é: “todo o direito, todas as normas e leis, todas as interpretações de leis, todos os ordenamentos são substancialmente decisões do soberano, e soberano não é um monarca [governo] legítimo ou uma instância competente, mas exatamente aquele que decide como soberano“.

Para Schmitt, o núcleo irredutível da política é essencialmente a possibilidade efetiva de exigir de seus membros o compromisso incondicional de se sacrificarem se um inimigo ameaçar a integridade e a vida de um grupo. Trata-se de postulado existencial e vital, e não ideológico. O princípio norteador aqui é a taxativa autodeterminação do princípio da defesa existencial dos “amigos”, e a última prova é morte. Estar disposto a morrer para manter a vida do grupo — e não importa o sistema de crenças do grupo, importa continuar vivo, isto é, literalmente existindo.

Nos associamos de várias maneiras. O mercado fornece a possibilidade de um convívio por meio da negociação numa comunidade comercial; se nos unirmos em torno de dogmas a respeito de pecado e redenção, formamos uma comunidade religiosa; quando buscamos regras para um comportamento adequado com objetivo de fazer o certo e o bem, vivemos em comunidades morais. Mas e a comunidade política, o que nos vincula politicamente?

Frédéric Gros, em seu livro Estados de violência, resume da seguinte maneira: “o limiar absoluto da política é o horizonte da guerra, o político designando a intensidade extrema da relação com o outro”, já que para “os amigos”, o “inimigo não é nem o rival nem o concorrente e nem o adversário”, mas aquele que “ameaça diretamente” a existência da comunidade.

O “amigo” aqui é uma categoria política e não virtude moral de um confidente companheiro para compartilhar tristezas e alegrias. Portanto, amigo não é a figura que encarnaria a benevolência e cumplicidade, mas “quem se mostra pronto para pôr a vida em jogo” pela sua comunidade ameaçada. Matar o inimigo ou morrer numa “batalha” não tem valor normativo, não fere uma regra do direito, por exemplo. Mas, como dirá Schmitt, tem um valor puramente existencial que se insere numa situação de luta efetiva contra ameaças de inimigos reais (e eu adicionaria, imaginárias).

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