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A feminista Djamila Ribeiro diz com toda a sua empáfia ter usado Racionais MC’s em sala de aula para ensinar filosofia. Tirando a empáfia, e algumas ressalvas, não discordo, eu mesmo já usei em aulas de sociologia. Do Racionais, sei duas canções de cabeça: Jesus Chorou e Vida Loka 1. Além disso, lembro-me que na adolescência as canções Fim de semana no parque e Homem na estrada faziam a cabeça de muita gente da periferia e de quem já fazia da periferia um fetiche.

Sem dúvida são músicas de potencial poético, com várias camadas de significado social e representam a experiência mais significativa a respeito de quem vive à margem do mundo. Os protagonistas dessas canções — simpatize ou não com seu universo simbólico — vivem experiências dramáticas de superação, frustração, arrependimento, conversão, traição, vingança e heroísmo. Tais canções não podem ser desprezadas por elitismos ocos e esnobismos literários. Para quem busca a mínima compreensão da vida real dessas pessoas, para além de clichês vitimistas e ressentimentos tóxicos, vale a pena ouvir.

Em um país acostumado com hipersexualização da música pop, e a maneira delinquente como isso é tratado como arte, a história do rap é de riqueza lírica indiscutível. Há ali objeto de crenças, aspirações, pensamentos e sentimentos muito mais complexos em termos de exigência moral do que o sensualismo tosco de muitos ícones da música popular, que tem dois objetivos: para o público, distração; para o artista, os benefícios financeiros da fama. Embora eu mesmo não goste muito do estilo musical, não é difícil reconhecer que o potencial do rap está mais na capacidade de forjar sentido a uma experiência vivida como ruína e caos social do que expressar isso numa forma literária grandiosa.

Fazendo uma comparação temerária, algumas canções são tão ricas quanto às da história do Blues, que nasceu dos spirtuals de escravos que trabalhavam na plantação de algodão no Sul dos Estados Unidos. Ninguém discute a qualidade de John Lee Hooker, Muddy Waters, Freddie King e Buddy Guy, por exemplo. A diferença é que o rap descreve a decadência da vida urbana. Se de um lado o Blues é o emblema da canção nostálgica, o rap brotou, com forte senso de revolta, do subsolo das ruas. Afinal, o bardo, ou o contador de história, remonta à mais longínquas raízes, vai até os trovadores medievais e aedos gregos. Esteja onde estiver, o ser humano tem necessidade sobrenatural de cantarolar seus caprichos, vaidades e fracassos.

Para quem acha que bandido bom é bandido morto, e que dentro da cadeia só tem facínora da pior estirpe, sugiro a canção de um grupo chamado 509-E: Oitavo anjo. O arrependimento, tomado como um profundo senso humano de que foram feitas escolhas erradas, também é virtude — mesmo no pior dos mundos possíveis e sem precisar recorrer a um Max Scheler para elaborar isso. Como eu disse, do ponto de vista estético, rap não é muito a minha praia. Há todo um contexto que não é o meu, embora eu tenha vivido uma boa parte da minha vida na periferia de Mogi das Cruzes, como morador e depois como professor de escola pública. Sem apelar muito para o princípio da caridade hermenêutica, não dá para ouvir algumas dessas canções com indiferença.

Em Oitavo anjo, o narrador fala de sua tomada de consciência na prisão, descreve como o mundo de lamaçal generalizado cuja referência é a guerra, o sentimento de desconfiança e a degeneração moral. Tudo é ali desgraçada e tentação — “Injustiças aqui humilhação ali/ Cadáveres sangrando”; mesmo assim, é preciso seguir firme. O narrador reconhece que naquele ambiente não tem outro jeito de sobreviver a não ser distinguindo o certo do errado, sem vacilar. Não se trata de saciar a fome, o frio ou as paixões sensíveis. O ponto de equilíbrio de um homem arrependido ainda é moral.

Há necessidade de buscar a virtude. Mesmo no inferno é o preço elevado que vale a pena pagar: “vou te apresentar o que você não conhece, anote tudo, vê se não esquece, você verá que não deixei me envolver, pra sobreviver por aqui tem que ser, mesmo no inferno é bom saber com quem se anda”. Esses versos denunciam como se sente a experiência mais exigente de um ambiente infernal: “o clima é de tensão, maldade, inveja… a destruição mora nesse lugar, e mesmo assim não deixei me levar, soube chegar na humildade pá; faça o contrário, caro pode te custar… As grades te fazem chorar; a saudade na direta vem te visitar; é difícil ter a mente sã; Detenção pior que o Vietnã”.

É possível discutir esses assuntos com honestidade em sala de aula? Não tenho dúvidas. Muitos alunos do ensino médio alimentam sua imaginação heroica com essas letras, por que não trabalhar a partir delas, por que negligenciá-las? Por que privá-los de refletir a partir de suas experiências efetivas? A princípio nenhum problema desde que não se faça disso um fetiche da periferia. Olhar para o detendo como a pobre vítima da sociedade que não teve escolha é o erro de fantasias ideológicas camufladas de teoria política, elas só fazem sentido no papel e na arrogância de quem acha que pode guiar a história.

Depois, vejo dois problemas básicos. Um diz respeito à natureza da escola e outro à natureza do rap.

O maior equívoco sobre a escola, e talvez a razão de sua ruína — ou seja, Joãozinho se forma sem saber ler —, é a ideia de que a escola deveria se abrir para a vida. Foi catastrófico para a educação escancarar o espaço de aprendizado, pois um espaço destinado à compreensão do mundo e da vida deveria permanecer à parte, literalmente protegido da vida e do mundo. O espaço de aprendizado não é público, no sentido de aberto a todos cidadãos, e nem fechado, no sentido de privado, mas literalmente um espaço que se protege da vida biológica e da vida social. Escola não é família e não é cidade. Por essa razão deveria se separar rigorosamente como espaço privilegiado de aprendizado e ter plena consciência dos próprios limites estabelecidos pelos limites da independência da reflexão. Como diz o filósofo francês Jean-François Mattéi numa frase lapidar: “a vida da escola não é de forma alguma a escola da vida”.

Por fim, rap precisa existir fora dos muros da escola, já que narra a experiência das ruas e a escola deveria se proteger do que se passa nas ruas. Se é da natureza desse tipo de canção evocar uma experiência social maldita e degradante, a escola deve ser o lugar que poderia pensar as raízes desse problema, analisando, com metodologia adequada e seriedade, o que essa experiência de fato significa a fim até torná-la mais suportável, mas não incorporar como linguagem para a reflexão filosófica ou científica. Racionais não é filosofiaIncorporar isso ao “cânone” escolar da literatura a ser estudada em sala de aula é como arrancar o rap pela raiz do solo que o alimenta a fim de domesticá-lo. É viver, pois, de uma pedagogia que não ensina e compor uma música que não convence.

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