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Foto: Nelson Almeida/AFP
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A política pode ser muitas coisas desde que não seja confundida com ciência, direito, economia, moral e, principalmente, religião. Trago uma verdade comigo quando penso em política: “Quando se é mortal, é preciso pensar como mortal”. Li em Alceste, de Eurípides. Fácil se perder em devaneios e acreditar que, mediante a política, é possível corrigir essa verdade a respeito da condição humana. Ninguém conseguiu ou conseguirá. Conceber a política como meio para corrigir a natureza humana e toda a vida social é atitude antipolítica por excelência.

Aristóteles foi o primeiro grande cientista político a ver todo esse problema com muita clareza quando demonstrou que o homem é um animal destinado a viver em sociedade, e que aquele que não pode viver em sociedade é ou uma besta ou um deus. A humilde capacidade de saber que se é mortal impõe à natureza do homem a vida em comunidade. Na política, não há saída para fora da esfera da vida compartilhada com a multidão de outros mortais. Na vida da cidade, não há um “além” que regula a vida da cidade. No espaço íntimo, cada um é rei; no espaço público, cada um é só mais um entre mortais.

Por isso Aristóteles, ao criticar os anseios metafísicos de Platão pela forma perfeita da unidade absoluta de toda cidade justa, definiu os parâmetros de como se deve pensar a política: “é visível que a cidade, à medida que se forme e se torne mais una, deixará de ser cidade; porque naturalmente cidade é multidão. Se for levada à unidade, tornar-se-á família, e de família indivíduo; porque a palavra ‘um’ deve ser aplicada mais à família que à cidade, e ao indivíduo de preferência à família. Deve-se, pois, evitar essa unidade absoluta, já que ela viria anular a cidade”.

A essência da vida política, isto é, da vida de mortais vivendo em “cidades”, portanto, é o reconhecimento de que a vida deverá ser partilha em multidão. O desejo de unidade absoluta e perfeita justiça corrompe a política porque corrompe a vida em cidade. O caso é que nenhum ser humano detém o poder para mudar essa sua condição. Os que tentaram forjar a nova natureza humana e a nova cidade na ideia de unidade de perfeição absoluta, adequados apenas ao sonho de imortalidade, pagaram com o elevado preço da destruição. Destruição do homem, destruição da sociedade e destruição da história. A ideia mais plena e acabada de pureza usada para destruir.

Buscar a “verdade absoluta” em política é matar a política. Não há homem ou sistema político capaz de oferecer essa medida enquanto medida para um bom governo, e muito menos para o destino de uma nação. A política não traz a felicidade. No máximo, garante o funcionamento de algumas instituições para amenizar os eventuais conflitos entre a multidão de mortais. E toda vez que tentou trazer felicidade, gerou mais e mais tristeza. A ideia de “um país feliz de novo”, por exemplo, é contrária ao que se deve esperar da política. A busca pela unidade perfeita como medida para a vida feliz é um exercício de ascensão para fora do mundo, pois se trata de religião e não de política.

Quando chegou ao poder, o PT inventou a mais equivocada ideia de Brasil. O anúncio publicitário veio com a campanha do marqueteiro Duda Mendonça: “Brasil, um país de todos”. Uma fórmula que destruiu a mais bela ideia de Brasil como, de fato, um país plural e de cada um dos brasileiros. O caso é que nunca houve ou haverá “um país de todos”. O PT não destruiu o Brasil apenas ao aparelhar o Estado para se perpetuar no poder. Mais do que isso, a máquina de propaganda petista destruiu a política. Para voltar a Aristóteles, quando todos os cidadãos estão sintonizados nos mesmos “acordes em dizer a mesma coisa, falando do mesmo assunto”, dirá ele, isso “é belo sem dúvida, mas impossível”.

Por outro lado, as reações antipetistas que se evidenciaram (embora já existissem bem antes) nessas eleições também criaram outra ideia falsa de Brasil. Uma unidade em torno do medo de que “tudo isso aí pode voltar”. Ironicamente, há riscos de o PT voltar justamente porque o tom de ameaça, o coro que anuncia desgraça, não consegue apresentar uma proposta séria de política. Bolsonaro não tem uma proposta de governo. Bolsonaro tem uma proposta de país. Nesse sentido, a candidatura de Jair Bolsonaro é tão antipolítica quanto a do rival petista. Os adversários para o cargo do governo estão obcecados com a tentativa de recriar e criar uma ideia consistente de país, mas o que oferecem nada mais é do que o anúncio do caos.

A direita brasileira que hoje é representada pelo candidato Jair Bolsonaro até agora não ofereceu uma ideia clara de governo, exceto o anúncio persistente e taxativo de que corremos o risco de “virar uma Venezuela” (versão do fracasso comunista latino-americano). Contra os adversários da “direita brasileira”, a esquerda é mais elaborada. Aliás, uma esquerda que não entendeu que o Brasil era maior e muito mais complexo do que a imagem que Marilena Chauí e Chico Buarque fizeram do país. Funciona assim: o concorrente Bolsonaro instaurará o Terceiro Reich assim que chegar ao poder. É falso e até perigoso pensar que o destino do Brasil pode estar nas mãos de nazistas ou de comunistas.

Quando se trata de políticas das ameaças imaginadas, quase todo mundo que participa do debate público tem mais ou menos claro aonde não se pode jamais chegar: nazismo ou comunismo. Tanto o nazismo quanto o comunismo servem como a medida definitiva do que deve ser “combatido” com todas as forças e meios necessários. Tais regimes políticos foram verdadeiras fábricas de horrores e ninguém deseja isso para o Brasil. A monstruosidade encarnada.

A forma irresponsável e idiota como os termos são lançados no espaço público de discussão, ferindo qualquer decoro da vida em cidades, serve para tentar mostrar “para o país” que os adversários são “a encarnação do mal absoluto”. Chamar alguém de nazista ou comunista significa chama-lo de “inimigo absoluto” e estar disposto a se sacrificar por uma grande causa. O que faz da retórica eleitoral uma espécie de “demonologia”, isto é, uma forma de identificar, classificar e combater as “verdadeiras” ameaças para a “unidade perfeita e absoluta” que o Brasil almeja.

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