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Entrei na faculdade de Filosofia ateu e saí católico. Comecei os estudos de Filosofia como leitor de Nietzsche, um dos críticos mais mordazes do cristianismo; hoje leio Santo Agostinho com devoção. Orgulho-me de nunca ter sido marxista. Ter lido Nietzsche antes de Marx me ajudou a criar uma resistente barreira psicológica contra as promessas do socialismo e a desprezar qualquer forma intoxicante de coletivismo. A verdadeira liberdade não está na divisão igualitária do pão, dos direitos externos e do poder, mas no equilíbrio interior capaz de orientar a vontade com justiça e senso de dever.

Confesso que, antes de frequentar as aulas de Filosofia, eu nutria uma imagem vulgar da história da Igreja Católica, em particular, e do cristianismo, em geral. Acreditava no mito iluminista da incompatibilidade entre ciência e religião, na fantasiosa caricatura da Idade Média como “Idade das Trevas” e no besteirol de que a Igreja estaria relacionada a todo atraso da humanidade em relação ao conhecimento, à libertação do homem e ao progresso; enquanto que o ateísmo, pelo contrário, liberta, aperfeiçoa e salva.

Em resumo, posso afirmar com segurança que eu era materialista, hedonista e tapado. E hoje, depois dos 40, pai de família e com os boletos e os impostos em dia, morro de vergonha toda vez que penso que, no auge da minha prepotência intelectual, eu considerava minha mãe tão bobinha por frequentar, com fervor e sentimentalismo, missas aos domingos e grupos de oração. É fácil desejar mudar o mundo quando a gente não precisa se preocupar com como o mundo funciona.

Falo por experiência própria: a esmagadora maioria das pessoas intelectualmente esnobes e moralmente soberbas tem uma ideia equivocada acerca do lugar da Igreja Católica na história do conhecimento. Já ouvi muita gente dizer — e até já cheguei a acreditar nessa ladainha — que quanto mais se estuda, mais incrédulos nos tornamos. Uma amiga socióloga certa vez me perguntou como alguém com a minha formação intelectual e “leitura” poderia ser católico? Afinal, segundo o credo dos esclarecidos, quanto mais conhecimento, mais ateísmo; quanto mais ignorância, mais religião.

Ao fazer um cuidadoso exame de consciência, eu não consigo me lembrar exatamente de onde é que eu teria tirado essas tolices a respeito da história filosófica e cultural da Igreja Católica. O que eu posso garantir é o seguinte: desenvolvi essa quase consistente visão de liberdade entre os meus 12 e 22 anos. Pensando a partir dessa experiência pessoal, gostaria de chamar a atenção para um detalhe: todas essas informações não foram aprendidas dentro da sala de aula, definitivamente. Porque, sinceramente, não lembro de ter sido catequizado ao ateísmo por professores-pregadores ateus. A primeira vez que eu peguei um livro do Nietzsche para ler e fiquei estupefato com tudo aquilo foi porque eu quis, e não porque um professor me indicou.

Algumas conclusões sobre a Igreja Católica eu consegui formular por mim mesmo, com meu brilhantismo, coragem e autonomia intelectual. Além do mais — e, por gratidão, preciso dar os créditos —, a ajuda de alguns amigos fora indispensável. Esses, de verdade, exercem muito mais influência na vida de um adolescente do que propriamente a fria relação institucional professor-aluno. Por isso não estou convencido de que a doutrinação ideológica em sala de aula é o maior problema da educação. Se eu fui doutrinado em sala de aula na época do colégio, isso não fez a menor diferença na minha formação e na minha vida. Meus professores não me faziam, como se diz por aí, “a cabeça”. Depois de 18 anos como professor de ensino médio, começo a entender o porquê.

Se um aluno se dispõe a ouvir com atenção e fascínio os discursos proferidos pelo professor doutrinador (seja lá de que natureza for a doutrina), é porque, de alguma forma, esse aluno já foi previamente convencido, em um nível anterior ao institucional, de que aquilo tem algum sentido para a vida dele para além do nível intelectual. A doutrinação não é uma comunicação substancial fundamentada no exercício de demonstração argumentativa. O proselitismo ideológico está ligado muito mais ao nível retórico do discurso; atua em um horizonte mais de desordem psicológica, portanto.

Nesse caso, o desejo do aluno não é pelo conhecimento em si. Ou seja: não é o desejo da “verdade”, não é busca de um conteúdo “científico” rigoroso. Bem antes disso, existe a conformação psicológica como subproduto de uma busca insegura e confusa de sentido para a vida. Sendo assim, pessoas aceitam, sem contestação argumentativa, o que o professor expressa pelo desejo de ter o mesmo status social que aquele professor. É uma atração estética, quase erótica, pela “figura” supostamente bem-sucedida (do ponto de vista intelectual e não material) e cativante do professor. Esse nível de atração mimética é muito mais pelo estilo de vida do que pela forma de adquirir conhecimento. Por exemplo, não é difícil encontrar aluno tentando imitar o jeito de fumar do professor que ele admira do que encontrá-lo tentando imitar as horas que esse professor passa ou passou estudando.

Essa conformação psicológica não tem a ver com a estrutura da sala de aula, pois o ambiente institucional não tem força suficiente para criar esse tipo de domínio, disposição e desejo; quem cria, na verdade, é toda a atmosfera social e existencial do aluno — por um lado, rede de amigos, família, grupos de WhatsApp, redes sociais etc.; por outro, como ele lida com suas crises pessoais, seu capital emocional etc. Não há uma ilha chamada “sala de aula” onde o professor e o aluno, em uma relação puramente assimétrica de poder, constroem a doutrinação.

Quem fala em doutrinação em sala de aula nesse nível supõe — a partir de uma ideia equivocada, por isso também ideológica — que o professor doutrinador consegue exercer com facilidade um domínio tirânico na massa amorfa de alunos passivos e submissos. Na vida real de uma escola, não existe essa sala de aula: alunos bonzinhos vítimas do predador ideológico. A suposta plateia cativa de alunos é bem menos cativante que os defensores de uma Escola Sem Partido imaginam. Além da falsificação de que o ambiente em uma sala de aula se dá entre opressor e oprimido, algoz e vítima, vale lembrar que o mito iluminista do bom selvagem rousseauniano de que o aluno nasce bom, mas a escola que corrompe, não passa disso: um mito.

Gostaria de encerrar essas reflexões com uma passagem de Santo Agostinho tirada das Confissões (que tive a oportunidade de conhecer em um curso na faculdade de Filosofia). Ele descreve um episódio de sua adolescência junto com os amigos:

Havia, próximo da nossa vinha, uma pereira, carregada de frutos nada sedutores, nem pela beleza nem pelo sabor. Alta noite, pois tínhamos o perverso costume de prolongar nas eiras os jogos até essas horas, eu com alguns jovens malvados fomos sacudi-la para lhe roubarmos os frutos. Tiramos grande quantidade, não para nos banquetearmos, se bem que provamos alguns, mas para os lançarmos aos porcos. Portanto, todo o nosso prazer consistia em praticarmos o que nos agradava, pelo fato de o roubo ser ilícito.

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